Crítica | Judas e o Messias Negro
Judas e o Messias Negro é dedo na ferida, sem perder o controle. É fera ferida que não perde seu charme, nem seu brilho quando o bicho pega. Emulando toda a barbárie e o racismo institucional na sociedade americana de 1969, o filme registra muito mais que a luta de Fred Hampton, o líder do Partido dos Panteras Negras, para com o engajamento do povo negro em prol de sua sobrevivência diante da brutalidade policial, mas expõe com força impressionante o trauma vivido pelo grupo radical dos Panteras e a tensão dos seus embates em uma Chicago retratada quase como cenário sem-lei de faroeste, sob uma típica atmosfera política que sufoca qualquer um. Judas tece críticas externas e também internas ao movimento, sem diluir ou exagerar nenhuma causa ou consequência de suas ações coletivas, por vezes planejadas e as vezes desesperadas, nisso tornando-se, facilmente, um dos melhores filmes do ano de 2020.
Drama caprichado, cuja base está na dualidade entre um “messias” que vive para conscientizar e limpar a dor dos seus, e o seu querido Judas particular (William O’Neal, um moleque informante do FBI infiltrado nos Panteras), temos aqui um contraponto moral estabelecido com total naturalidade e franqueza, sendo este grande parte da espinha dorsal do filme. Ousada, e direta ao ponto, a obra serve como um debate ficcional e histórico à questão: vale a pena combater fogo contra fogo? Se o radicalismo do grupo os levou à danação, a coragem e a determinação de homens e mulheres cansados de sofrer, por ser quem são, merecem ser lembradas contra a vitória de um estado higienista. Judas e o Messias Negro é sobre a força que nasce da humilhação, e do perigo de “viver” numa sociedade cujo racismo estrutural ameaça qualquer gota de melanina portada por um cidadão. Inevitável a revolta explodir, e Fred é o capitão do barco, ciente de que poderá ser apunhalado pelas costas a qualquer momento.
Mas não há outro caminho, senão seguir. Ele(s), contra o mundo, anti-heróis deles mesmos, tentando construir uma realidade utópica mais justa, nos anos 60. Ao invés de rejeitar a violência e o suspense que brota de certas sequências, o diretor Shaka King assume com orgulho a bravura do seu protagonista, e entrega um filme sensível, poderoso e realista, mas jamais apologético e muito menos hipócrita perante os seus temas mais complexos, e ainda atuais. Daniel Kaluuya, de Corra!, entrega o melhor trabalho da sua carreira, ao carregar no olhar enigmático o pesar e as desilusões de um homem muito jovem, castigado, e que ainda sorri entre seus seguidores rumo ao bem-estar da sua raça, tão sonhado. Como seu contraponto nessa história de luta sem glória, Lakeith Stanfield é um nome cada vez mais respeitado em Hollywood, presente também na ótima série Atlanta, tendo aqui o papel de vilão arrependido, perdido na própria confusão. Na própria dor, e perseguição, por ser quem se é.