Crítica | Sobral: O Homem Que Não Tinha Preço
A origem latina da palavra “resistência” vem de resistire, que faz lembrar o conceito de “ficar firme, aguentar”, relacionando a manter posição. Em tempos de ditadura militar, em plena efervescência cultural e política mundial, o Brasil vivia aquém, sem liberdade para o povo, sem vazão ao poder popular. Apesar de mentes envelhecidas nadarem normalmente a favor desta correnteza de mazelas, havia alguém que fazia a contramão desses ideais, destacando a militância no ambiente jurídico.
Sobral Pinto era um senhor de alta idade que teimava em legislar em favor dos direitos humanos, em um período no qual o conceito era completamente ignorado e tratado como assunto subestimado, uma vez que o regime impunha sua vontade para quem quer que tentasse resistir a ele.
A pesquisa de Paula Fiuza – diretora e roteirista, interessada pessoalmente pelos assuntos legais dos tempos em que a esquerda somente habitava os porões do regime – leva o espectador ao ano de 1999, quando ocorreu o resgate das fitas com os julgamentos dos presos políticos, os quais o jurista Sobral, que destacava sua tremida e passional voz, ainda teimava em defender; tudo através de um material adquirido por um jovem advogado que visava preencher o espaço de sua tese de conclusão de curso na faculdade. As defesas serviam de inspiração para alguns bons defensores de direitos, além de fornecer a garantia da lei, tão ignorada no absolutismo de farda.
A intimidade do já idoso protestante realiza-se através dos depoimentos de seus convivas e descendentes, dos que foram bravamente defendidos por ele. A obra também reúne boas imagens da época, com falas do próprio advogado. A briga para fazer da liberdade a bandeira universal teve um episódio especial na união do biografado com Luis Carlos Prestes, mostrando que mesmo o marxista e militante extremo não tem necessidade de conflitos extremos com o comportamento católico praticante do causídico, exemplificando o quanto tem em comum em relação ao discurso socialista e do moderno modo de Jesus tratar os excluídos dos evangelhos.
O subtítulo do filme reflete a verdade atrás de sua personalidade e trabalho. Não ter preço não era uma expressão, especialmente por poucas vezes cobrar de seus clientes, a maioria formada por gente humilde, de poucas posses. Sobral era um homem do povo, refutava que o chamassem de Vossa Excelência. Por suas virtudes no Direito terem a ver com sua extrema humanidade, contraditas no passional modo de enxergar o futebol e as fases ruins de seu time de coração, o América da Tijuca. A sabedoria do jurista não o salvaguardava do fanatismo do futebol ou do bom humor e sacanice em relação a belas mulheres, inclusive Sônia Braga. Os fatos narrados em relação ao tema, prendem-no à realidade, distanciando-se da ideia de um androide em prol da justiça.
A influência da religião fez Sobral se autopunir quando cometeu o pecado da infidelidade conjugal: a renúncia ao próprio ofício de procurador e a diversões sãs, como partilhar dos estádios de futebol em dias de jogos e sessões de cinema. A marca do erro se fixou em sua alma, revelando o lado conservador do advogado, que só teve sossego sobre o caso quando conseguiu o perdão de sua esposa.
Segundo as falas dos depoentes, Sobral apoiou o movimento “revolucionário” dos militares, por medo igual do possível regime vermelho. A partir do momento em que a constituição passou a ser transgredida, o jurista mudaria de lado. A fala é dada em gritos, com a voz claramente alterada em razão da passionalidade, possivelmente pela indignação consigo próprio ao ter caído no engodo dos que viria a combater. Nem mesmo sua verve e inteligência foram capazes de identificar a tomada de poder ilegítima: mesmo apoiando o golpe em 1964, houve o ato de lançar uma carta de repúdio a Castelo Branco por assumir a presidência mesmo sendo o chefe do exército, o que era também inconstitucional.
A falta de concessões às convicções que tinha e que defendia fazia dele uma personalidade sui generis, algo descoberto em sua integridade anos depois dos seus feitos junto ao romantismo, ao extraordinário trabalho que fazia para o povo de modo geral. Os créditos finais passam-se em uma homenagem no terreiro de samba, ao lado de seu amigo João Nogueira, que canta os feitos de seu amigo e mentor, popularizando uma figura de integridade ímpar, que a câmera de Paula Fiuza busca honrar. Às vezes não dando tanta vazão ao conservadorismo conhecido do advogado, a obra ressalta o viés de luta de seus convivas e o altruísmo que fala mais alto que qualquer pragmatismo pseudo-revolucionário, mostrando um Sobral como o jurista do qual o povo precisava.