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  • Resenha | Cangaços – Graciliano Ramos

    Resenha | Cangaços – Graciliano Ramos

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    Poucos escritores brasileiros conseguiram retratar o sertão e o sertanejo como personagens de uma sociedade desigual ainda em construção. Graciliano Ramos, autor alagoano e representante da segunda fase do modernismo brasileiro, trouxe à literatura o nordestino não mais como figura alheia à sua própria realidade, um figurante escondido entre umbuzeiros e mandacarus, mas agora dono da própria história.

    Cangaços, lançado pela editora Record, é uma coletânea de textos de Graciliano, publicados em jornais no período de 1931 a 1941. Nestes artigos curtos, o autor reflete sobre a cultura sertaneja, tratando o banditismo – e seu consequente entendimento pelo governo e população – como um movimento complexo que só o nordestino poderia conhecer a fundo. O escritor retrata com esmero uma época em que a solução encontrada para diminuir os levantes sociais contrários à opressão que o povo sofria era a simples e pura violência.

    Os personagens do livro são figuras reais: Antônio Silvino, Antônio Germano, Virgulino Ferreira da Silva (o Lampião), Maria Gomes de Oliveira (Maria Bonita), e outros que trouxeram ao sertão uma aura mítica, quando trabucos falavam mais alto do que palavras. As figuras retratadas são pessoas comuns, que viam no ronco da barriga vazia um motivo mais do que suficiente para se revoltar contra a situação que as envolvia. A fome, a seca, a opressão representada pelos coronéis e a força repressora instaurada na região foram a faísca que deu início às ações dos cangaceiros. Um levante cuja data de início remonta ao final de 1700, mas que só um século depois ganhou força.

    O uso do plural no título da obra deve-se à distinção que o autor utiliza ao detalhar dois tipos de cangaço: o cangaceiro que age de forma solitária e revanchista de outro cujo objetivo maior é formar bandos e subir na escala de poder com verdadeiros exércitos particulares. O autor não faz concessões às ações deste último. Apesar de professar a fé a Padre Cícero de Juazeiro, Lampião era um monstro, e ao cangaceiro, assim como aos demais que violavam a vida e cometiam atrocidades contra ricos e pobres, só restava uma chuva de balas. A violência que imperava na região, no entanto, não era de um movimento consciente, mas fruto de um ciclo interminável de pobreza e castigo.

    Ramos consegue retratar este ambiente hostil de forma leve e poética, com o estilo elegante e conciso já consagrado em seus romances e contos. Como alagoano e conhecedor da realidade à sua volta, o autor transmite uma carga pessimista, de quem sobreviveu aos destemperos que o sertão lhe trouxe. Como no texto Dois Cangaços (publicado no famoso periódico de esquerda Diretrizes, em 1938, e depois no Diário de Notícias, em 1953), que problematiza a realidade pobre do estado de Alagoas, dominado pelo desmatamento e pela consequente seca, restando aos habitantes morrer de fome, emigrar para o sul ou alistar-se ao exército. Não sem antes sofrer da violência policial, já que “apanhar do governo não é desfeita”, como afirma o personagem Fabiano em Vidas Secas ao se referir ao Soldado Amarelo, símbolo do elemento repressor do romance.

    Reunindo artigos que serviram de instrumento de luta, fruto de uma escrita fundamentada na concisão da linguagem e na reflexão sobre as mazelas comuns à realidade nordestina na década de 30, a edição lançada pela Record traz à luz o lado menos conhecido de um jornalista que militou durante toda a sua vida por uma sociedade mais igualitária. Na obra, além dos originais, duas narrativas são publicadas em livro pela primeira vez: Lampião entrevistado por Novidade e a crônica Dois Irmãos. A primeira é uma fictícia entrevista com o bandoleiro, que responde a perguntas sobre propriedade, progresso e família, e na qual Graciliano demonstra sua potência narrativa, emulando com perfeição a suposta fala do cangaceiro. Já a crônica Esaú e Jacó inicia-se comparando a revolta e a resignação do sertanejo aos arquétipos dos personagens bíblicos, para depois analisar rapidamente, com propriedade e desgosto, o Nordeste que ninguém conhece.

    Apesar de extensas, as notas de rodapé ao final de cada artigo contextualizam os escritos e trazem curiosidades sobre as mudanças linguísticas entre esta e a primeira publicação. O prólogo escrito pelos organizadores da coletânea, Ieda Lebensztayn e Thiago Mio Salla, também oferece um maior aprofundamento sobre a vida e obra do autor, sendo uma fonte bastante rica para o estudo do regionalismo de 30. A narrativa de Graciliano é uma cultura cheia de nuances, projetada em um retrato inacabado. A importância do autor excede a literatura e percorre a vida cultural, política e jornalística da época, transformando sua prosa em um diálogo vivo. Uma luta de quem tinha na arte sua maior arma.

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    Texto de autoria de Karina Audi.

  • Crítica | Deus e o Diabo Na Terra do Sol

    Crítica | Deus e o Diabo Na Terra do Sol

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    As moscas sobre as carcaças de animais mortos, acompanhadas da crescente música, revelam como é árdua, dura e árida a vida do herói focalizado pela câmera de Glauber Rocha. A iconografia visual condensada na trilha incidental certamente influenciou o trabalho de Sergio Leone, especialmente quando a maturidade o atingiu em Três Homens Em Conflito. O início, em forma de epílogo, contém poucos diálogos, quase nenhum deles direto; a observação, feita por Manoel (Geraldo Del Rey), da paisagem e do estilo de vida do povo do sertão realiza-se apenas por imagens, um resgate da máxima do cinema, pouco em voga no esquema comercial atual.

    A linguagem do discurso é simples, não em seu conteúdo – relevante ao extremo – mas simplista no modo tacanho e humilde da fala. A fé é propagada entre aqueles que sequer têm o pão diário para se alimentar, fomentando a esperança dos miseráveis e necessitados, que não têm onde ou em quem se agarrar se não no Divino.

    A câmera insistentemente trêmula emula os movimentos dos trabalhadores da lavoura e do engenho, que, com o seu suor, tentam produzir o seu sustento, mas que na prática fazem mais enriquecer seu patrões do que através de qualquer outro esforço. Mesmo quando o pobre e incauto peão tenta resgatar o que é seu por direito, esbarra no velho sistema explorador, que tenta roubar o pouco que lhe resta. Ao perceber seus direitos se esgotando, Manoel se rebela, agindo de maneira inversa a dos seus companheiros.

    O modo intimista com que o roteiro de Rocha e Walter Lima Jr. é executado contempla um lado idílico e sobrenatural do sertão, mas seu conteúdo ainda consegue ser direto, especialmente nas perseguições a cavalo e confrontos armados. É como se o expressionismo alemão se colidisse com o faroeste de John Ford, que gostava de contemplar o ambiente e as planícies norte-americanas para contar suas histórias. A Pernambuco de Glauber não tem paragens tão repletas de verde ou de montanhas frondosas, o que resta é o solo arenoso, a seca e as rugas nas testas dos peões, que tinham no sol inclemente o seu único aliado.

    A chacina impingida pelos poderosos ceifa mais vidas do que as precárias condições de vida no desértico nordeste. A perseguição ao pobre homem que tentou executar a “justiça com as próprias mãos” emula o modo com que o povo é esmagado pelo dedo do opressor. O cangaço é mostrado sob um viés diferente, como justiceiros que lutam pelos direitos do povo. Manoel, sem muita escolha, adere ao Capitão Corisco (Othon Bastos), recebendo dele a distinta alcunha de Satanás, para se diferenciar do arquétipo de vaqueiro, e ser finalmente temido pelos inimigos.

    A crença em São Jorge é um símbolo da necessidade de defender o povo do seu destino trágico. O rifle e o punhal são os objetos escolhidos para impor a mudança, algo necessário em meio ao ríspido modo com que todos são tratados. O altruísmo de Corisco é tamanho que ele sequer cogita a possibilidade de fugir do combate, mesmo sabendo que enfrentar o caçador Antônio das Mortes (Maurício do Valle) é quase garantia de perecer. Munidos da coragem e do chumbo, o capitão cangaceiro e Manoel – ou Satanás – vão em direção ao combate final, levados pela balada de Sérgio Ricardo, que narra suas aventuras como canção. O destino arredio dos revoltosos é um grito de louvor à liberdade, teimoso, que não aceita a possibilidade de ser enjaulado, seja pelas grades da cadeia, seja pelo escravismo que predominava no sertão.

    O tom poético do filme exibe verdades, discutindo-as sem ter qualquer pudor em vilanizar os coronéis, que ainda praticavam métodos datados e feudais com o pobre povo, escravizando-o a troco de contrapartida quase nenhuma, além de tomar pessoas normalmente marginalizadas como as figuras heroicas da fita. Não à toa a película ditou tendências estéticas no cinema brasileiro e mundial.