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  • Crítica | Rolling Thunder Revue: Uma História de Bob Dylan

    Crítica | Rolling Thunder Revue: Uma História de Bob Dylan

    Os documentários de Martin Scorsese já fizeram história – sendo O Último Concerto de Rock o melhor deles. Fossem essas vastas pesquisas a respeito de cinema italiano e americano, sejam sobre grandes nomes da música como os Rolling Stones e a vida e obra de George Harrison, o guitarrista dos Beatles, Scorsese sempre manteve um interesse especial com uma figura, no mínimo, controversa e enigmática. Estamos falando do cantor e compositor mais premiado de todos, cuja fortíssima verve política nunca deixou de pulsar em suas letras épicas. Bob Dylan é um profeta, e canta como tal. A ser descoberto, ainda, pela geração pop dos anos 2000 que não liga muito para o rock, ou a poesia que pode ser usada para analisar e criticar a realidade de uma época (recurso este que rendeu a Dylan um inesperado Nobel de literatura, o único para um músico nos 118 anos do prêmio), fato é que o cara da guitarra e sua gaita inseparáveis já meditou sobre tudo e todos, como se o palco para ele fosse o livro para o escritor.

    Agora está um pouco mais fácil entender porque Scorsese dedica a Dylan uma atenção mais especial, que para outros. A arte e a pessoa de Bob Dylan atraem como só, e os filmes de Scorsese vibram de uma forma muito parecida com as verdades e a genialidade das letras do autor de Blonde on Blonde, ou o soberbo álbum Highway 61 Revisited. Aos que nunca ouviram ambas as obras, fica o dever da lição de casa, pois nela está o motivo real do cineasta de Touro Indomável e Taxi Driver se interessar tanto pelo baixinho com voz de cantor sertanejo. É porque o que saiu da sua boca teve um valor que serviu para parar uma nação inteira, e o ouvir, e questionar um contexto histórico que vai além: Bob Dylan refletiu sobre o status quo norte-americano num momento culturalmente caótico em que apenas um grande orador poderia decifrá-lo, e se fazer entender. Enquanto os EUA estavam de ressaca da Segunda Guerra Mundial, invadiam o Vietnã e dançavam no festival de Woodstock, Dylan olhava para a loucura e a inquietação generalizadas e compreendia tudo, em inesquecíveis palavras de reflexão.

    É justamente nessa época que acontece a turnê Rolling Thunder Revue, em 1975, quando Dylan já era famoso o suficiente para convidar vários músicos da cena folk a viajar pelos Estados Unidos, revisitando a realidade das coisas com muita liberdade e um espírito itinerante de pé na estrada, vamos cantar!. Numa das entrevistas do documentário de 2019, o próprio cantor admite que não lembra mais nada dessa turnê, nem o porquê dela chamar assim, e aparenta não dar a mínima para qualquer coisa relacionada a ela – o momento é hilário que mostra o quanto Dylan é desprendido do passado, por mais glorioso que ele seja, e para ele tenha sido, mas não é mais. Scorsese reúne várias belas imagens de shows com grandes estrelas do momento, em especial a belíssima companheira inseparável do homem, Joan Baez (provavelmente a cantora que dividiu o palco com Dylan que melhor entendia sua mentalidade), cantando palavras mágicas como se proferir esses feitiços musicais, e irradiar seu encanto, fosse sua obrigação na Terra.

    A bem da verdade, falar do impacto de No Direction Home, o primeiro e espetacular retrato de Scorsese a respeito da lendária figura do cara estranho que nunca perdoou perguntas idiotas de jornalistas, e sempre ousou questionar a realidade vigente no mundo ocidental do século XX, é ser injusto com as propriedades desse Rolling Thunder Revue. Ao focar na turnê para falar do cantor, o documentário mais recente perde muito de sua força por mais lindas que sejam algumas cenas – e são, de fato. Se antes falava-se do cantor, sua importância histórica e o peso de sua obra no mundo das artes, indo fundo no DNA dylanesco e na razão dele e das suas letras nunca serem esquecidos até o fim dos tempos, aqui Scorsese nos faz olhar para um encantador e libertador período de 1975, mas que, vez ou outra, parece confuso e longo demais para nos fazer ter a certeza de que isso vale a pena ser lembrado. O poder aqui então parece estar mais nas imagens, do que no significado delas, em mais de duas horas de material restaurado. Eis uma obra que não vai muito longe, mais para a curiosidade dos fãs de Bob Dylan, sendo que No Direction Home é de longe o melhor guia para começar a entender esse gênio que ninguém viu sair da lâmpada mágica, até porque ele nunca se deixaria prender a alguma coisa – exceto a música. Mas ai é uma questão de alma, são outros quinhentos.

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  • Crítica | O Cheiro da Gente

    Crítica | O Cheiro da Gente

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    Larry Clark acredita mais na minha geração do que eu mesmo. Kids e o Cheiro da Gente não só têm a ver com quem está na faixa dos 20 anos, mas também com a molecada que os anos 70 produziu até hoje, desde muito antes das redes sociais, quando o Facebook ficava nas garagens e nos porões cheios de música e gente que fazia mais do que mostrava. Clark filma a juventude que muda de visual mas segue a mesma, sempre em busca ou vivendo as liberdades que aos poucos a vida foi tirando de nossos pais e avós, mas mais do que isso: Clark, tal como Richard Linklater e John Hughes, não se interessa pela transição do tempo de uma sociedade oprimida e opressora, mas prefere focar sua lente na era pós-Woodstock, quando já começamos a poder ser o que sempre fomos: Livres, como Joan Crawford, que já tentava fazer seu intolerante marido entender, em Possuída, de 1931. Filmes que resumem uma época.

    Três amigos corriam à vontade por um museu, no auge da nouvelle vague de Jean-Luc Godard. Um tipo de Cinema sociopolítico, mais por inevitabilidade que proposital, é bem verdade, mas que sobrevive e pulsa forte, tangente à expressão por si só, em cada nível de interpretação que o cinema independente europeu ou mundial já se submeteu. Agora, é tanta maconha, sexo confundido com amor, amor com paixão, impulso, instinto, nuances de Cláudio de Assis e fogo puro que fica difícil não se atrair por O Cheiro da Gente, infestado de um aroma jovial de quem enxerga e admira, no escuro, o brilho do suor de quem vive rápido e morre jovem! Filme de representação bem-sucedido por não caber em rótulos, tipo os recentes TangerineBande de Filles, saladas contemporâneas isentas de explicação ou gênero – mas que ousam ser cinema de qualidade e abrangência inquestionável.

    Para Clark, então, a liberdade é um triunfo sobre os fantasmas do passado que ninguém ainda sabe usar direito, o que pode gerar a tal libertinagem, ou seja, o excesso de ousadia. Quando um mendigo numa pista de skate vira obstáculo para os moleques ultrapassarem, nota-se a indiferença do indiferente, como Luis Buñuel soube tão bem interpretar no clássico Os Esquecidos, à medida que um indigente é agredido num México desigual por um bando de rebeldes sem causa. Essa rebeldia fruto do tudo-ou-nada é a matéria-prima para um cinema tão vivo quanto a sociedade que observa; curioso, que pulsa através de uma arte também revolucionária por essência. Cinema também é primavera, nem sempre precisa de camisinha – ou se importar onde suas flechas acertam. O proibido é proibir nas relações das quais fazemos parte e nos fazem ser quem somos – David Bowie sabia disso e ajudou o mundo a reconhecer o fato.

    Cada vez menos existem “filmes de excluídos”, mas sim “filmes de pessoas”. O tempo moldou essas “obrigações” da arte. E nessa onda, em que só o que é honesto é mostrado, o falso é ignorado e só quem goza a vida tem valor. São filmes que acabam por ser veículos que prestam serviço às novas revoluções ideológicas, racistas e sexuais do presente, pequenas jóias nas quais Bob Dylan e Clark aparecem do nada para nos lembrar de que continuam vivos, sim, vagando relevantes por aí, e tais os verdadeiros ídolos deste mundo, se tornaram incapazes de desaparecer por completo. Porque, no fim das contas, é a importância da liberdade de expressão que explica o porquê de O Cheiro da Gente ser indispensável.

  • Crítica | Steve Jobs

    Crítica | Steve Jobs

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    1. “Vão te frustar quando tentar o seu melhor,
    2. Vão te frustar exatamente como disseram que iriam.
    3. Vão te frustar quando tentar ir pra casa,
    4. Vão te frustar quanto estiver na solidão…” 

    Versos de Rainy Day Women, de Bob Dylan (Blonde on Blonde).

    Danny Boyle adora gente desconectada. Curte jogar o peixe fora d’água e filmar o que acontece, na esteira do que o (um dos) fundador(es) da Apple acreditava ser: “Criatividade é conectar as coisas“. Seja numa Londres de zumbis ou numa índia de underdogs, a pegada de Boyle é primeiro entender o estranho, e depois, o ninho. O maior nome da tecnologia nos anos 2000 construiu seu próprio habitat, e foi demitido de sua própria empresa por ser indomável, nas palavras do próprio comitê da companhia. O cara era inflexível, consigo e com todos em sua coleira de disciplina e utopia graças a necessidade individual de mudar o contato entre as pessoas, mas Jobs não devia se olhar no espelho como ser humano (“Tô cercado de idiotas!”), e tampouco Boyle deve ter seus amiguinhos pra conversar, de igual pra igual. Daí fica fácil perceber como as intenções se casam em mais um filme hiper-cerebral sobre um ícone que não merecia ser reduzido a suas capacidades penianas, no caso de um ator pornô. Steve Jobs não vem do entender os pilares do mundo moderno, e sim incorpora as necessidades existenciais de um cara que não se sente parte deste mundo, e mesmo assim precisa aprimorá-lo já!

    Notável é o equilíbrio entre o pessoal, como a treta do gênio com sua filha, e o trabalho onde o gênio sai da lâmpada e faz acontecer, ao custo de perder o amigo, mas a piada, jamais… O filme é leve, ganhando nossa simpatia por esculpir uma selva complexa de forma tranquila e mastigada, tal o superior Margin Call faz com o mercado financeiro. Cosmos intrincados e decifrados numa tela de Cinema; distantes, ainda que avistados por uma lente de aumento onde tudo é de fato mais bonito, só que na ótica de Aaron Sorkin, conhecido por escrever diálogos destruidores no estilo pingue-pongue, a fórmula de mostrar uma personalidade cheia de camadas e mistério funciona no paralelo com a Apple, fundação egocêntrica feito criança que não quer dividir seus brinquedos, mas já começa a cansar, sem aquele frescor de A Rede Social e outros ensejos – aliás, o próprio Sorkin se trai aqui em vários momentos, percebendo que, quando a lógica de suas histórias começa a cansar, pula do exagero para a licença poética como no confronto de ideologias versus emoções, entre Jobs e sua assistente (Kate Winslet, melhor atuação do filme), num corredor abaixo de uma plateia louca por outra de suas épicas palestras.

    A figura de Jobs e o interesse que surge dela jamais o sugere ser um computador humano, Steve Hardware, mas vem do que fala, uma dialética que nutre o comportamento de quem vive ao redor de um assumido workaholic, a partir de uma atuação cirurgicamente precisa de Michael Fassbender, ironicamente fora das mãos de seu mentor, Steve McQueen (12 Anos de Escravidão). Na pele do ator, o homem e o gênio sente seu Q.I. em cada batimento daquilo que parece não bater em seu peito humanoide – é nos diálogos que Fassbender nos remete ao Zuckerberg de Jesse Eisenberg, em 2010, na forma seca, introvertida e objetiva que encaram as pessoas como conquistas, e não semelhantes. Um gênio sabe que é um gênio, mas talvez genialidade ande de mãos dadas com a humildade de não admiti-la. Bill Gates, Bob Dylan e Da Vinci não nos atraem pelos seus triunfos, mas pela coragem para erguê-los, no caso, o elixir da megalomania em suas veias. “Estamos aqui para fazer a diferença no universo, se não, porque estamos aqui?”, alegava Jobs. Como diria Carl Sagan: Humildade.

    Como diria a Globo: A gente vê por aqui. Um filme que sabe muito o que é, e ainda melhor: O que não pode ser. Boyle consegue nos passar o efeito unidimensional da história (pro bem e pro mal) combinando com o sentimento que temos diante de um potente notebook. Steve Jobs é isso, uma ferramenta para conhecermos os componentes de uma vida de lutas e batalhas em busca de um futuro visado por um homem que, feito Boyle e Sorkin, cineasta e escritor, sabia quem era e o que precisava fazer para chegar lá. São as decorrências do caminho até o “lá”, o El Dorado de Jobs (o reconhecimento (a duras penas) do público) que o filme aborda, e nos conduz de boa adentro dos corredores da Apple, apostando senão no carisma visionário do gênio de calça jeans para impedir o filme de ser frio tal suas invenções. O filme aposta mesmo é no caráter benéfico da tecnologia, como essa pode mudar o mundo, e acerta em cheio nisso, na abordagem direta em honrar a simetria do passado que traçou o amanhã, hoje vivido por todos nós.

    Fato é, positivo ou negativo, que a biografia moderna no molde americano já foi definida pelos méritos de A Rede Social, filme fruto de quem é visionário (David Fincher) e não de quem pensa ser (Boyle), o que não é mero detalhe, ok? Steve Jobs não será referência no futuro, mas o criador do iPad merecia um bom filme em torno do que seu nome representa, sugere e fez crescer, cultivando uma era de tecnologia e tal, mas não em torno de sua ambição. Falta a ousadia do cara no filme homônimo de sua vida, os próprios funcionários que trabalharam diretamente com ele eram intimidados pelo Corleone da Apple a cada dia. Talvez é o que faltou, aqui: Um verdadeiro gênio, exigindo o máximo de todos neste bom filme, previsivelmente certinho e correto até mesmo na edição, mas é claro, celebremente aquém das várias frases inspiradoras do crânio.