Resenha | Demolidor: O Homem Sem Medo
A fase de Frank Miller à frente do título do Demolidor é um clássico indiscutível na jornada do vigilante, exemplificado nos recentes volumes um e dois por Klaus Janson e pelo próprio Miller. Após um exitoso retorno, em Queda de Murdock, houve uma demandada por um novo enfoque do personagem, o que ocorreu através de um retorno às origens ao estilo do que a DC Comics já havia feito em Batman: Ano Um, também com outro artista nos desenhos, cabendo a John Romita Jr. o lápis de O Homem Sem Medo, lançado em 1993.
Matt Murdock ainda é um menino, que assiste a Cozinha do Inferno de um lugar privilegiado, acima das cabeças das pessoas. Sua rotina inclui pequenas contravenções, como interferência no trabalho de policiais de rua, com pequenos furtos de cassetetes em plena luz do dia, munido com uma máscara preta que protege sua identidade. Seu lugar preferido é o ginásio onde seu pai Jack Murdock treinava, nos tempos áureos como lutador de boxe.
O garoto já tem contato direto com a extorsão e criminalidade, uma vez que seu pai é obrigado sob ameaça a trabalhar para o Arranjador, após ter ameaçado sua vida e a de seu filho. Esse fator serve para quebrar o maniqueísmo normalmente encarado pelos heróis paladinos, mostrando que o embrião do Demolidor tem muito mais relação com o lado sujo de Nova York e o caráter humano do que qualquer discurso adocicado a respeito do vigilantismo.
Neste início, o fator mais interessante certamente é a construção em volta de Jack Murdock, que prima pela simplicidade e pela sinceridade. O drama do pai solitário é de fácil identificação e todos os seus pecados são explicáveis, uma vez que sua motivação é proteger a criança que está sob seus cuidados. Sua bebedeira é o artifício covarde tomado para esquecer seus momentos inglórios, e o soco que desfere no filho é a reação ao asco que tem por si, e que amaldiçoadamente está sendo seguido por seu herdeiro. O desejo de que Matt tenha outro rumo de vida faz o boxer se cegar até para o bom senso, fazendo-o agir com uma violência instintiva até em seu lugar de conforto, em casa.
A mostra do incidente que cegou o garoto é conduzido por um modo bastante emocional, desde os pequenos detalhes, a respeito da matéria radioativa que acertou o proto-herói da Marvel, até a origem do evento, quando o jovem salva um idoso cego de ser atropelado. A inserção de Stick é providencial, servindo de contraponto a autocomiseração que o infante sente, dando mostras de sua evolução, de um lutador em início de carreira para se tornar também um acrobata.
Os últimos momentos de Jack são melancólicos, mas vitoriosos, reprisados no filme do Demolidor de 2003, ainda que na revista o momento seja bem menos melodramático, assim como as ações que seguem o evento. Matt inverte o paradigma de seu pai e começa a ir atrás dos malfeitores para fazer justiça com as próprias mãos. Apesar de comedida, a violência gráfica de Romita Jr. começa a ser mostrada de maneira interessante, aplacada um pouco pela arte-final de Art Williamson. A agressividade tem um preço alto e justifica, entre outros fatores, o asco do personagem pelo homicídio, além de amarrar a origem de seu mestre aos futuros opositores.
A transição para a fase adulta é rápida, assim como a introdução ao curso de Direito e a amizade com Foggy Nelson. O sentimentalismo é dedicado à apresentação de Elektra, que mistura sensualidade natural, feminilidade e nenhum receio de se apresentar de modo sexual. As origens do herói são muito bem amarradas às aparições dos vilões, de aliados e possíveis pares amorosos, em doses homeopáticas, gradualmente pontuando o cânone do personagem, incluindo a evolução de seu traje, o mesmo uniforme negro que inspirou a primeira temporada de Demolidor da Netflix, em 2015.
A edição, repleta de extras, faz valorizar ainda mais os últimos momentos da revista, que por sua vez não são totalmente conclusivos, reforçando a ideia de prequence, que em sua essência acerta em quase todas as introduções. O enfoque no nome de Demolidor – no original Daredevil – é uma saída inteligente e emotiva, que se torna ainda mais simbólica com o mergulho no ar que o vigilante, já paramentado, executa e no valor às cores de Christie Scheele, também aludindo ao uniforme amarelado original, finalizando com o traje escarlate. A amálgama entre fúria da corrupção e justiça cega que se veem no ideal do Homem sem Medo.
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