Crítica | Silêncio
“Uma coisa peço ao Senhor, e a buscarei: que eu possa morar na casa do Senhor todos os dias da minha vida, para contemplar a beleza do Senhor e meditar no Teu templo” (Salmo 27:4)
A religião de Martin Scorsese é o Cinema, sempre foi. Seu templo também nos é claro, há mais de 70 anos, e sua bíblia, igualmente. O cara que não é mais um cara, mas um vovô de peruca branca e olhos cansados é do tipo que se ajoelha sem pensar duas vezes, se rever seus dogmas e ambições ainda latentes, e reza para os deuses do passado diante do ouro que vem de um Andrei Tarkovsky, ou dos diamantes de Kenji Mizoguchi – uma prática aliás bem refletida no comportamento de boa parte dos seus fãs, apreciadores do “bom” e “velho” cinemá, como diriam os franceses. Também por isso, o mestre américain se mantém incorruptível (e não há melhor palavra) na face do que vira, ou já virou o cinema do século XXI – e claro, sobre o que o grande público se devota a assistir; alheio, mas até certo ponto como já demonstrou o modernismo histérico de O Lobo de Wall Street. Dos grandes artistas de língua inglesa, Scorsese tem um jeito todo Alan Moore e Bob Dylan de produção: Eles fazem, e nós corremos atrás para sair do lugar-comum. “Se virem!”, eles sussurram, e nós nos viramos, cambaleantes rumo ao mérito de suas visões, suas noções e distinções certa vez além das nossas. É a forma prazerosa que acham para nos lembrar que, quem quiser ser o artista, muito antes tem o seu lugar na plateia desse vil cabaré.
Na dúvida se o temente padre Ferreira, homem de fé magistralmente interpretado por Liam Neeson (a melhor atuação do filme) de fato largou o cunho da igreja e, aos olhos da mesma, se corrompeu em plena missão de catequese às crenças e doutrinas de japoneses contrários à imposição cristã, no séc. XIX, os jesuítas Rodrigues (Andrew Garfield, empenhado) e Garupe (Adam Driver, no ponto) embarcam na missão quase impossível de colher a verdade em solo asiático, e porventura, retornarem com vida a Europa – é um risco a se correr, assumido pela dupla ocidental sob a torga dum certo e dum errado indiscutíveis. Os portadores de uma verdade universal, esquecendo que até o tempo é relativo mediante o meridiano onde estamos. Uma gente que conta(va) com a passividade dos ‘estranhos’ para estender a sua política de cruzes, domesticando um mundo pelas vias de uma ordem em comum. Gente impositiva. Gente sem medo.
Como bem atesta José Saramago em 1998, numa das várias entrevistas reafirmando sua descrença no divino, “Há quem ainda busque um Deus pois ainda não apagamos totalmente o medo, nem eliminamos a morte”. É esse o medo e o pavor que os padres portugueses de Silêncio degustam em cenas de força e mise-en-scène tipicamente scorsesianas, com uma entrega total dos atores: o medo do seu Cristo ter fronteiras e falhar sob as regras de Buda. Quando a intolerância prova do seu próprio veneno, veste-se com a culpa do inocente; “pobre de mim!”, diriam os injustiçados (ostentando seus direitos humanos) num Japão tão intolerável quanto a instituição católica já (sempre) foi.
Scorsese então não julga, nem aponta, mas impiedosamente e em todos os sentidos, vinga com gosto o imperialismo dogmático da igreja por uma inquisição feita para ela mesma, sob-medida, e pelas mãos dos japoneses. A história é justa, a duração precisa, e a trama do filme também, já que nos fins de uma arte tudo pode e merece ser justificado. No caso de Silêncio, representante atual contra o lamento de ‘não se fazem mais filmes como antigamente, o pretérito da casa dos santos é assim vingado por quem verdadeiramente assume o lado umbralino da própria religião. Haja coragem do veterano cineasta, propondo-nos, na articulação e encenação modesta de dois sagrados em choque, decodificar assim o subjetivo de cena por cena (soberbamente fotografadas por Rodrigo Prieto, na sua segunda parceria com o exigente diretor após Lobo), e ao mesmo tempo, por ironia, nos induzir à preservação das simbologias visuais e das cadências sobrepostas um conflito em forma de filmaço, mas também de uma obsessão religiosa que integra o DNA de Scorsese. Aqui, nem um pouco escondida, mas potencializada e refinada desde o anêmico e falso A Última Tentação de Cristo.
Feito evolutivo que, na adaptação do livro de Shusaku Endo, mal-vista, desvista ou simplesmente desprezada pela sociedade Instagram de hoje em dia, prova-se pelo intenso, profundo, ora gelado e às vezes acalorado entendimento que só um ateu, ou seja, um outsider das causas religiosas – ou, melhor dizendo, o católico que não aceita fechar seus olhos para um passado de coesões vergonhosas e assassinas que nenhuma catedral ou salmos milenares apagam – conseguiria ter e formular, na lucidez do presente, no visual e no impecável, dissertando assim não uma denúncia, tampouco crítica. Silêncio debate a validade de um existencialismo tão mitológico quanto questionável, revirado e posto em cheque sem dó e com grande serenidade por aquele que mais entende, finalmente, de violência ou paganismo. Não Deus, neste caso.
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