Resenha | A Grande Farsa
Quadrinho argentino escrito por Carlos Trillo, A Grande Farsa compila duas historias localizadas na republiqueta fictícia com um nome simbólico e forte: A Colônia. Nesse país o governo ditatorial conservador e falso moralista impõe sua autoridade, baseando-se em uma condição bastante tola. o presidente (chamado O Fantoche) se baseia na crença de que a virgindade de uma moça garante ao país bênçãos.
A historieta possui desenhos de Domingo Mandrafina, e faz parte do recente resgate editorial brasileiro aos quadrinhos dos hermanos. Na introdução de Paulo Ramos se fala das formas que as duas historias foram publicadas pelo mundo, especialmente em formato italiano, que serviu de base para esta versão da Comix Zone.
Quanto a narrativa, há um número grande de críticas a hipocrisia das ditaduras latino americanas, especialmente no que toca a “virginal” personagem de Malinche Centurión. Sua construção como mulher irresistível, a questão incestuosa envolvendo um figurão da Colônia e sua condição semi divina reúnem paralelos com a realidade que espezinham o modo como os autoritários se valiam do seu poder para assediar, agredir e dominar. Assim como também faz referências a políticos míticos da própria argentina, como foi com Evita Perón, vista pelo povo como um ente poderoso e quase mágico, tal qual Centurión. Essa é uma das boas sacadas do roteiro.
Outro paralelo óbvio com a ditadura argentina e com outros regimes semelhantes da América do Sul é a figura do Iguana, um agente da lei que demonstra outra questão hipócrita das ditaduras pegando o combate a corrupção e suposto enfrentamento do banditismo, mas lançando mão de bandidos para fazer seus trabalhos sujos, evocando até a moralidade religiosa cristã como base de ação.
Os personagens são muito palpáveis, o herói da jornada é um homem falho, endividado e imoral. A outra protagonista é uma mulher volúvel e que não tem vergonha de sua libido, e isso apresenta um pouco da dimensão de que esse mundo é complexo e bidimensional. Além disso, os cenários de A Colônia repetem clichês de favelas brasileiras e vielas cubanas. É tudo bem encaixado, parecido com o dos outros países do continente americano, fato que reforça a ideia de que aquela historia poderia ser em qualquer lugar abaixo do México.
A forma como o gibi quebra a quarta parede é bem inteligente. O leitor dificilmente não gostará de Meliton Bates, personagem que parece um Joseph Goebbels mais enérgico e carismático. Embora seus métodos sejam bem diferentes possivelmente do alemão, assim como suas motivações também são bem distantes do que o nazista fazia. Trillo é inventivo neste ponto, coloca pistas ao longo do caminho, mesmo quando é expositivo não é meramente gratuito, é como se Cosecha Verde fosse realmente escrito por Bates, que do alto de seu super talento para contar historias, se enfiou como personagem, traduzindo ao público uma historia que tem muita realidade mas também contornos fantásticos.
A segunda historia, focada em O Iguana e que leva o nome do personagem não é tão cheia de reviravoltas quanto a primeira, mas possui uma mitologia própria em que Mandrafina pode variar mais ainda entre estilos. Já na primeira história, O Iguana parecia uma espécie de homem super poderoso e cruel, misturando elementos do vilão zumbi da DC Solomon Grundy, Luca Brasi de O Poderoso Chefão e um pouco de Walter de O Máskara. Mas aqui sua lenda é expandida, mostrando o terror causado por malfeitores famosos no povo mesmo anos após sua morte.
A Grande Farsa é um bom resgate da Comix Zone. Contém um trabalho gráfico bonito e simples. Suas dimensões valorizam os desenhos de Mandrafina e a tradução é ótima. Consegue estabelecer bem o clima da época em que se passa sua historia. Há um sem número de denúncias aos graves crimes dos governos autoritários do século XX, ora romantizando com figuras abusivas, mas sem deixar de julga-las como absolutamente culpadas dos problemas do país. Além de serem histórias charmosas, que lembram bem os clássicos literários de aventura portenhas e brasileiras, com temperos típicos do imaginário popular de quem habita as linhas próximas do Equador.