Resenha | Memórias do Esquecimento – Flávio Tavares
Narrado em primeira pessoa pelo ativista, preso político em três oportunidades, comunista “subversivo” e banido junto ao grupo de 15 prisioneiros trocados pelo embaixador americano que foi raptado pelo movimento MR-8, Memórias do Esquecimento serve como desabafo literário do escritor que só retornaria a sua terra natal dez anos depois de exílio, só angariando coragem para escrever suas memórias após 30 anos de todos os acontecimentos e sofrimentos impingidos a si. Flávio Tavares não poupa seu leitor da crueza e crueldade dos torturadores e nem salva seus colegas de expor as suas tolas e irreais ilusões de mudar o mundo.
Antes de começar seus capítulos, falando franca e diretamente ao leitor, ele se preocupa em sempre deixar uma citação de algum pensador ilustre, para embasar e testificar o seu testemunho. Já na introdução ele contesta qual a real necessidade de retomar as memórias daquela vivência marginal, e a resposta para tal indagação é respondido ao longo dos capítulos. Parte do que ele lamenta é ter de enfrentar toda a avalanche de emoções, pela qual ele passa, em silêncio absoluto, sem voz ativa, castrada da possibilidade de contestar seu estado.
A imersão no cotidiano de Tavares é muito fácil de ser estabelecida, pois sua escrita é docemente envolvente, repleta de situações rotineiras que facilitam a identificação, além de demonstrar facilidade do autor em transmitir sentimentos e sensações. Seu sofrimento é passado ao leitor, e um exemplo disto é como Tavares descreve uma tremedeira, não causada pelo frio, mas pela temeridade em repetir os maus agouros que já tinha vivido. Rememorar era exercício de dor e a empatia gerada por seu “relatório” é muitíssimo exitosa em causar desconforto no analista. A temeridade e o medo são tão grandes que qualquer som estranho o faz remeter aos torturantes momentos de cárcere, os quais viveu e dos quais jamais esquecerá, mesmo com o título da publicação – o esquecimento certamente seria um alívio para a mente cansada e para a sua alma aflita. Tais episódios servem de aliterações, nas quais o autor conta, em detalhes desagradáveis e por vezes escatológicos, os meandros de suas estadias na prisão política, assim como os detalhes das sessões de tortura que sofreu. A ideia das torturas, segundo o jornalista, era triturar física e emocionalmente o preso, destruí-lo e chegar muito perto da morte, mas sem alcançá-lo, de um modo que o sujeito envolvido até desejasse que sua vida findasse.
Os detalhes do embate ideológico que viria a rachar o PCB (Partido Comunista Brasileiro) são explicitados, inclusive sendo citadas as saídas de Carlos Marighella e Joaquim Câmara Ferreira por estes optarem pela luta armada ao invés do engajamento mais teórico.
Apesar de muitas dificuldades em conseguir informações dentro dos presídios, havia formas de conseguir ouvir os noticiários, que davam conta do rapto do embaixador americano Charles Elbrick. A fonte de informações também trazia maus agouros, como a morte de companheiros de luta. Mesmo com toda a truculência e violência que sofriam e que os tornava mais cascudos, os militantes ainda sentiam demais a queda de seus semelhantes, também por temerem que aquele destino fosse o deles..
Por estar entre o grupo de libertados, chamados de os “15”, ele tinha informações privilegiadas sobre os segredos e meandros do rapto do embaixador. As informações registradas evidenciam o baixo nível de organização dos grupos, além da clara falta de estrutura destas células. O embaixador declarou que foi muito bem tratado pelos capiturantes e que eles eram “jovens idealistas”. Nas entrelinhas há uma afirmação de que os militantes estavam muito mais preparados para morrer do que para matar. Esse ponto de vista certamente não era somente dele, mas de muitos dos analistas da ação dos revoltados.
A segunda parte começa com duas citações das mais emblemáticas no sentido da luta entre esquerdistas e militares: “Aquele que se opõe a uma ditadura tem de aceitar a guerra civil como meio de derrubar a ditadura. Aquele a quem repugna a guerra civil deve desistir da oposição e aceitar a ditadura” a frase de Arthur Koestler mostra como funcionava a cabeça de muitos opositores do governo, a outra, “Um dia vai haver uma guerra grande neste sertão. Uma guerra sem a cegueira de Deus e do Diabo“, do cineasta Glauber Rocha seria profética. Em Brasília, Tavares acompanharia em 1964 a saída de Jango do Palácio do Planalto sem conseguir sequer preparar suas malas decentemente, amedrontado e sem o mínimo de dignidade. Suas afirmações vai na direção de desmentir o argumento de que a tomada do poder foi leve e tranquila, afirmando que já de início o tratamento dado para quem discordava destes era truculento, violente e sem espaço para dignidade. Depois disso, “a rosca do parafuso enroscaria ainda mais”, segundo o autor. O cerco aumentava cada vez mais, gradativamente as reprimendas tornavam-se mais e mais humilhantes e agressivas.
Com 30 anos de idade, o autor não via nenhuma saída que não incluísse uma postura contestadora mais firme, chamada por este de “reação moral”. O capítulo Os Conspiradores ganha como introdução uma emblemática frase de Gaston Bachelard: “Querer o esquecimento é a maneira mais aguda de se recordar“. O escritor discorre sobre a ideia, ainda em 1964, de derrubar o recém instituído poder, mas todo o planejamento era tosco, mal organizado e nada profissional. Os militantes deveriam viajar para a URSS, para fazer cursos – de alcunhas curiosas como Curso Stálin e Curso Lênin – mas não o faziam até por falta de verba. Os contatos com os exilados eram complicados: Jango no ano de 1965 residia em Montevidéu e somente se envolveu na militância ajudando a alocar os exilados. Leonel Brizola manteria uma granja onde os rebeldes plantariam tomates e receberiam uma preparação psicológica para mais tarde serem instruídos em combate. Implantar o foco guerrilheiro consumiu dois anos.
A tortura é relembrada em muitos momentos, e no capítulo O Atentado é discorrido o absurdo de tratar tal postura como invenção e em incorrer a culpa desta aos vitimados, que receberiam o tratamento graças a sua insubmissão. A lógica seria “destruir o prisioneiro e tornar natural o medo”. Primeiro se tortura ou se ameaça, o que vai contra o atual discurso de alguns de que os militares só teriam “quebrado umas unhinhas” dos comunistas.
A parte em que Flávio descreve a dor de sua filha Isabela é absolutamente emocionante. A dor causada pela separação do exílio só não era maior que a dúvida a respeito de qualquer retaliação a si que envolvesse a sua herdeira, visto que, em uma das torturas, tal possibilidade foi cuspida por seus agressores. A distância entre uma bravata dita simplesmente para amedrontar, em comparação com uma séria ameaça, não era totalmente clara na cabeça de Tavares, já que a situação mexia com a parte passional de sua mente, combalida demais para raciocinar tranquilamente a despeito de toda essa situação.
O exílio marcou muito a vida do autor, desde o início deste período e a vontade de retornar a sua terra, até o sequestro que sofreu em terra estrangeira. Apesar de todo o cunho pessoal em seu livro, o jornalista diz que em seus últimos capítulos não tentou fazer qualquer julgamento meritocrático nas ações suas e de seus “inimigos”; seu papel era só relatar suas vivências.
Em determinado ponto ele assume que a sua linha de pensamento era utópica demais, e que a luta dos manifestantes jamais viria de encontro à realidade. Já terminando o livro, o autor assume que a sua revolta começou ao conhecer Che no Uruguai, em 1961. Lá em Punta Del Leste, ele fotografaria um frágil asmático que trajava uma jaqueta verde-oliva e que teria em seu semblante muito significado, mais do qualquer tanque do regime brasileiro. Seria naquele mesmo Uruguai que o jornalista “cairia” e consequentemente veria sua primeira morte, e onde começaria as memórias que ele tanto queria esquecer.
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