Os festivais que nunca tivemos
A literatura não acontece só quando os olhos de alguém percorrem as páginas de um livro. Ela vai além das abarrotadas prateleiras e dos silenciosos gabinetes de leitura. A literatura também se materializa em ocasiões agitadas, onde as pessoas se encontram, se confraternizam e compartilham paixões iguais e interesses diferentes. Esses espaços privilegiados são as feiras e festivais que reúnem escritores, editores, capistas, tradutores, ilustradores, distribuidores, vendedores, mídia especializada e públicos. Alguns desses eventos assumem a condição celebrativa e adotam o nome de “festa”, como é o caso da Flip, que se firmou como um dos mais importantes momentos do ano literário no país.
A questão é que esses festivais são peças necessárias para a engenharia de uma cena cultural. Diversas razões apontam pra isso. As feiras literárias permitem que leitores tenham contato com escritores, e que editoras exibam seus autores e catálogos, buscando fidelizar públicos. Esses eventos costumam despertar a atenção de outros públicos e ajudam a formar novas gerações de leitores. Além disso, geram mídia espontânea para o setor, alavancam vendas e ainda atraem realizadores de outras mídias, como a TV e o cinema, interessados em adaptações e produtos derivados. Ganham o mercado editorial, os criadores e os leitores. Se por um lado quem lê pode trocar ideias com grupos de interesses comuns, assistir a palestras e conhecer grandes autores, por outro as editoras têm a chance de conhecer seus públicos, divulgar coleções e pesquisar diretamente a opinião dos leitores sobre seus produtos. Quer dizer: eventos literários movimentam a economia, valorizam a escrita e a leitura, e expandem a presença da literatura na vida das pessoas.
Para os fãs de romances policiais e de suspense, há várias feiras todos os anos. É uma pena que não no Brasil. Com exceção de participações isoladas de autores em festivais mais amplos, não se criou ainda um evento totalmente dedicado à literatura policial do porte dos que existem na França, Inglaterra e Estados Unidos, por exemplo. De olho nessa receptividade, os mercados locais não pensam duas vezes em investir para fomentar produção e vendas.
Sangue na Europa
Na Inglaterra, um dos mais interessantes festivais é o Harrogate Crime Festival, que acontece em julho e dura quatro dias. Com jogos investigativos, premiações e palestras, já reuniu nomes como Ian Rankin e Tess Gerrintsen. O público elege o melhor romance do ano, e o vencedor recebe 3 mil libras como incentivo. Uma curiosidade: é justamente em Harrogate que fica o Old Swan Hotel, lugar usado por Agatha Christie para desaparecer misteriosamente por 11 dias em 1926!
Ainda na terra da rainha, em Bristol, acontece sempre no mês de maio a CrimeFest. Considerado um dos 50 melhores festivais literários do mundo pelo jornal The Guardian, teve a primeira edição em 2008, com jantares, mais de 40 mesas de discussão com autores e editores, workshops e apresentações variadas.
Não poderia faltar um evento em homenagem à Rainha do Crime. O International Agatha Christie Festival acontece em setembro em Torquay, onde a escritora nasceu em 1890. A celebração dura em torno de uma semana, reunindo fãs de todo o mundo desde 2004. Um dos pontos mais visitados pelos participantes é Greenway, a famosa casa de verão onde Agatha escreveu muitos de seus sucessos.
Na Escócia, há o Bloody Scotland (Escócia Sangrenta), que movimenta o mês de setembro na cidade medieval de Stirling. Durante uma semana, tradutores, leitores e escritores reúnem-se para discutir a diversidade do gênero e o festival apresenta os melhores romances policiais publicados no país de Arthur Conan Doyle.
Os festivais criminais atravessam o Canal da Mancha e invadem a parte continental da Europa. Entre março e abril, Lyon, na França, sedia o Quai du Polar Crime Festival, um dos mais prestigiados do gênero. Por lá, já passaram Patricia Cornwell, Henning Mankell, P. D. James, Harlan Coben e Gillian Flynn, entre outros. Na última edição, mais de 65 mil aficcionados visitaram a cidade.
Se os nórdicos são a nova moda criminal, não poderiam faltar nessa lista. A Islândia promove o Icelandnoir, e a Noruega, o Krimfestivalen. Na Suécia há o Crime Writing Festival, que acontece em agosto na ilha de Gotlândia. O slogan é “para quem ama suspense em livros e filmes”, e o evento apresenta trilhas investigativas, exibição de filmes, peças de teatro e cinquenta autores participando, com nomes da casa como Lars Kepler e Anne Holt.
A Espanha também merece destaque, pois tem um mercado muito ativo no que se refere à literatura policial. Há dez anos, Barcelona promove entre janeiro e fevereiro a BCNegra, reunindo 60 autores em mais de 20 atividades. Charme adicional é o prêmio de melhor romance – Pepe Carvalho Award – homenagem ao detetive criado por Manuel Vasquez Montalban.
No mesmo país, há a Semana Negra em Gijon. A edição deste ano teve 120 autores, 20 deles vindos América Latina. Foram 100 atividades culturais gratuitas para o público durante nove dias de festival. É no evento que são concedidos o Dashiel Hammett Prize!
No resto do mundo
Os alemães têm o seu Krimifestival e os nova-iorquinos, o ThrillerFest. Argentinos realizaram a quarta edição de sua Buenos Aires Negra (a BAN!), e os uruguaios dedicaram uma semana de seu mês de agosto para a Semana Negra de Montevidéo. Foram painéis literários, simpósios, dezenas de atividades e entrada gratuita para o público. Jornalistas, criminologistas, especialistas forenses, policiais, e – claro! – autores do gênero trocaram ideias e experiências sobre violência, corrupção e criminalidade na literatura.
No Chile, desde 2011 acontece o Festival Iberoamericano de Novela Policial “Santiago Negro”. Com autores da Argentina, Chile, México, Venezuela e Espanha, um dos objetivos é incentivar o intercâmbio cultural entre os participantes, qualificando a produção e difundindo novas expressões do gênero.
Como se não bastasse a Feria Internacional del Libro de Santiago (Filsa), marcada para outubro e novembro, vai homenagear a literatura nórdica com ou devido destaque para Sissel-Jo Gazan (Dinamarca), Kjartan Fløgstad (Noruega), Tove Alsterdal e Johan Theorin (ambos da Suécia).
Esses são apenas alguns dos festivais mais reverenciados do noir no mundo. Com uma produção de qualidade cada vez mais crescente, um mercado leitor gigantesco e editoras que nada devem às estrangeiras, por que não temos um festival do tipo no Brasil? Falta coragem ou ousadia? O que impede que uma cena cultural dessas aconteça pra valer? Quando chegará a nossa vez? Com a palavra, editores, livreiros, escritores e agitadores culturais…
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Texto de autoria de Chris Lauxx, pseudônimo dos jornalistas Rogério Christofoletti e Ana Paula Laux, autores da enciclopédia Os Maiores Detetives do Mundo e editores do site literaturapolicial.com