Crítica | Quando o Dia Chegar
São os anos finais da década de 60. O homem está cada vez mais perto de pisar na lua, movimentos sociais tomam conta das ruas e, em meio a uma manifestação, correm Elmer e Erik perseguidos após roubar uma loja. Cortam o grupo de hippies que levanta cartazes de paz e amor. Há, então, a apresentação de um claro contexto sociopolítico em que a história se desenvolverá. É a exigência por um mundo melhor que será, logicamente, confrontada por reacionários, enquanto as cidades cada vez mais se enchem do desejo e entoam canções como Shadow Of A Gipsy.
Há a sombra de um cigano
Que me segue onde quer que eu vá
Buscando Amor enquanto viaja entre aqui e lá
Por que é assim?
Baseado em uma compilação de fatos reais, dirigido por Jesper W. Nielsen (Okay) e escrito por Søren Sveistrup (The Killing), Quando O Dia Chegar trata da história de dois irmãos: o mais velho, Erik (Albert Rudbeck Lindhardt), e o mais novo, Elmer (Harald Kaiser Hermann). Após sua mãe ser hospitalizada, a dupla é mandada para Gudjeberg, um orfanato do Estado, onde lhes é prometido que permanecerão somente até o natal. No prédio afastado, no meio do campo, os irmãos são confrontados com uma desumana realidade patriarcal comandada pelo punho de ferro do Diretor Heck, interpretado por Lars Mikkelsen (House of Cards). Nesse cenário, as individualidades são massacradas em prol da produção de um grupo obediente e unificado.
Aqui em Gudjeberg você se torna parte de uma comunidade. Se não respeitar a Comunidade, ela irá punir você.
É importante ressaltar o quão ciente dos seus temas está o texto. Não só no orfanato se encontram as pressões para a permanência de uma sociedade patriarcal. Já que, logo no início, a mãe dos garotos é acusada por um agente do Estado de não ter controle dos filhos, já que é uma mãe solteira. Para o que ela responde que seria mais fácil se recebesse o mesmo que um homem pelo mesmo trabalho. O filme já fundamenta de início sua base, mas infelizmente o roteiro não é suficiente para tratar do que vem a seguir.
Tapas, gritos, murros, tortura, estupro; fascismo, patriarcalismo. Tudo isso está presente no orfanato, e é tudo mostrado sem ressalvas. Ao mesmo tempo, não é o mostrar dessas ações que acarreta em peso, ou até mesmo um desenvolvimento maior das causas. Por se tratar de uma história que dura meses, o avançar da narrativa não apresenta consequências para diversas das violências, o que as tornam gratuitas e, no fim, pobres. E não só em relação a isso, mas em questões gerais há o acumulo de defeitos, como clichês que não devem ser perdoados por se estar em um “formato clássico”. Quando O Dia Chegar não se mostra capaz de aprofundar temas ou desenvolver muito os personagens além dos irmãos.
Erik mostra desde o começo interesse pela figura sexual feminina, enquanto Elmer, o mais novo, concentra-se em seus sonhos. É interessante notar, especialmente, como a ausência de mulheres em suas vidas desencadeia nessa visão simplista do ideal mercadológico de gênero. Apesar disso, ambos se apresentam como distintos dentro do orfanato, incapazes de serem os “fantasmas” que lhes sugerem ser. A do mais velho devido ao amor pelo irmão, e a do mais novo pela sua criatividade, ambas as características geradas por incentivos da mãe.
Heck, Lars Mikkelsen, carrega naturalidade por si só, mas o roteiro, como já afirmado, não é capaz de aproveitar isso. Surge então um personagem raso, que se apresenta como uma caricatura de si mesmo após ações inverossímeis. E o mesmo padrão se sucede para os outros adultos, com exceção da professora de linguagens Lilian (Sofie Gråbøl), que segura o conhecimento da língua, a base para a criação, que logo sente empatia por alguns dos garotos, em especial Elmer.
É nos alunos mais velhos que se vê os já crescidos frutos da insensibilidade e ignorância, da brutalidade como finalidade meritocrática. Uma noção de que você pode ser o oprimido. Ou se aliar no que poderá aproveitar como uma posição de opressor. Um ser que, através do sofrimento, moldou-se no que lhe era desejado. Aceitando os abusos do sistema e se consolando em ter sua própria dinâmica de vigiar e punir.
A fotografia claustrofóbica entre paredes, grades e closes, assim como a direção de arte com suas cores apagadas no orfanato, contrapõe os planos abertos da cidade e suas cores vivas. Em momentos de maior angustia, a tremida câmera na mão. Ainda que essas questões visuais passem a imagem de algo polido, a cinematografia não se vê completamente aproveitada devido a uma montagem inconsistente sobre a coerência da linguagem cinematográfica. O que torna mais fácil perceber quais intenções guiaram esse o projeto. E demonstram como a base de qualquer obra está sempre no tratamento de seus conceitos iniciais.
É na dicotomia entre o diretor e a professora, o homem e a mulher, que encontramos o confronto de gerações e ideologias que Quando O Dia Chegar deseja tratar. O passado, o patriarcal, e o novo mundo de sensibilidades e criatividade que é o futuro, o feminino. E é nessa previsão empática que se encontra a figura do cigano. Aquilo que a humanidade deveria ter evoluído a ponto de até mesmo se tornar após tantas manifestações. Mas não foi, e ainda não é, o caso. Por enquanto, ainda somos a sombra. Mas pelo menos deixamos de simplesmente a vê-la.
Eu sou a sombra de um cigano
Amo o vento soprando contra minha face
Amo sentir o ar da Liberdade
Quando será?
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Texto de autoria de Leonardo Amaral.
https://www.youtube.com/watch?v=cxJSOWJTZdI