Crítica | Jogos Vorazes: A Esperança – O Final
Repartida em duas partes, Jogos Vorazes: A Esperança – Parte 1 e Jogos Vorazes: A Esperança – O Final, a franquia segue a história de um mundo dividido em distritos, onde a Capital consagra-se em louros, luxo e riqueza e os demais distritos lutam por migalhas de uma vida. Na parte anterior iniciou-se a reorganização dos distritos contra a Capital, porém esta medida resulta em diversos atritos, fazendo com que estes se desliguem de seu inimigo em comum: o Presidente Snow (Donald Sutherland). Lideradas nos bastidores por Alma Coin (Julianne Moore) e Plutarch Heavensbee (Philip Seymour Hoffman), usa-se da propaganda e do poder do mito para estabelecer as motivações de um povo para alcançar sua liberdade.
Katniss (Jennifer Lawrence) é este grande mito, criado inicialmente nos primeiros Jogos Vorazes, quando a Capital inseria crianças para se matarem em um jogo sangrento a fim de apaziguar os ânimos, e principalmente demonstrar a superioridade da Capital sobre os demais distritos. Propaganda, sede de sangue, mentiras, manipulação midiática e interesses escusos retratam com excelente aproximação o estado de nosso planeta, e não à toa é a franquia que melhor retrata nossos tempos para posterior registro histórico.
Com o grande mérito de criar uma das sagas mais importantes cultural e comercialmente da história do cinema, a saga infanto-juvenil “Jogos Vorazes” traz consigo um conteúdo mais robusto do que seus pares no cinema, bem como um elenco de excelência capaz de traduzir o conteúdo político com a simplicidade e verdade necessárias. O destaque fica com Donald Sutherland e sua elegância: cinismo, bom humor e perigo iminente; e para Philip Seymour Hoffman, cuja falta foi duramente sentida principalmente ao final do terceiro ato.
Coincidentemente ou não, é possível ver atualmente países europeus que por um lado flertam e negociam com príncipes sauditas, que por sua vez financiam grupos terroristas. Assim, diante do poder de choque de um atentado, a solução óbvia jamais é complicada. A solução óbvia é justamente enviar meninos e meninas para matar ou morrer em guerras ineficientes.
Eis que surge um exemplo. O fenômeno chamado “Efeito Espectador” traduz a dificuldade de grupos sociais agirem em momento de ajuda quando solicitado, como uma espécie de sedação coletiva. Uma possível solução para isso, de acordo com o pesquisador Phillip Zimbardo, é justamente o poder que o herói detém sobre nós. O herói é o exemplo capaz de retirar a venda da sociedade e demonstrar o potencial de pessoas comuns frente a situações extraordinárias.
Assim, Katniss é constantemente manipulada pela presidente Coin, ao usar de sua empatia natural para comunicar com o que há de mais honesto no povo. Katniss jamais tem o amparo e esperança que os Messias do cinema trazem consigo, tais como Luke Skywalker, mas sim a dificuldade e a tristeza de ter sua vida retirada de si até que estivesse numa situação onde agir seria a única solução. E é desta maneira que Katniss representa esta heroína incomum e inesperada, quase como quem tivesse de ser outra pessoa, e é assim que ela triunfa sobre os vetores de uma guerra política suja e incoerente. Por não ser uma personagem comum, toda a estrutura da saga segue um formato não-canônico, onde o clímax não se traduz na luta da heroína com seu nêmesis, mas sim na abertura para a complexidade do jogo político e o entendimento que o grande inimigo não é uma pessoa. É sob esta percepção que A Esperança: Parte 2 inverte o conceito de vitória e derrota quando, sob uma operação “bandeira falsa”, Katniss percebe que o verdadeiro retrato do fascismo não é uma caricatura de Hitler ou coisa que o valha, mas sim aquele capaz de tudo pelo bem comum, o “cidadão de bem”; aquele que fará tudo sob o pretexto de alcançar o melhor para todos, inclusive roubar a liberdade do povo, e que esta atitude não tem lado ou ideologia pré-determinada.
Acusado, como seu capítulo anterior, de ser muito lento para a audiência com déficit de atenção, a conclusão da saga de Katniss como a heroína de um novo tempo parece inadequada em seu formato. Realmente a direção tem seus momentos de dificuldades, o clima é soturno e desamparado, quase sem momentos de alívio, o conteúdo é mal dimensionado e poderia valer-se do incrível elenco para trazer mais impacto à história que ocorre de maneira lenta — E eventualmente simplesmente não progride — mas é com certeza um fechamento muito digno para a saga, que apesar de não ter conseguido alcançar a excelência técnica em seus capítulos, é com certeza um dos materiais mais ricos da cultura pop atual ao fazer emergir temas tão atuais e de difícil digestão.
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Texto de autoria de Marcos Paulo Oliveira.