Bem-vindos a bordo.Flávio Vieira (@flaviopvieira), Filipe Pereira (@filipepereiral), Carlos Britto e Mario Abbade (@fanaticc) se reúnem para celebrar o centenário do Blue Eyes. Dono de uma bela carreira no cinema, tendo atuado em quase 70 filmes, o que lhe rendeu indicações e premiações importantíssimas no Óscar, BAFTA, Globo de Ouro, trabalhou ao lado de grandes diretores e ainda veio a dirigir, acompanhem conosco um pouco da trajetória daquele que é considerado o interprete do sofrimento, a voz dos perdedores, Frank Sinatra.
Duração: 163 min. Edição: Victor Marçon Trilha Sonora: Victor Marçon
Arte do Banner: Bruno Gaspar
Fruto da parceria entre Frank Sinatra e o diretor George Sidney, iniciada no clássico Marujos do Amor, a trama do musical Meus Dois Carinhos é simples, baseada no velho drama de ascensão social via malandragem. Sinatra vive Joey Evans, um bon vivant desprovido de dinheiro que consegue um emprego como showman em uma casa noturna bem mais respeitável que seu repertório de cantor de segunda categoria. O novo ofício põe o principal talento do intérprete à prova, em cenas ainda mais primorosas que o capítulo inicial do trabalho destes dois homens do cinema.
A produção é adaptada da peça musical de mesmo nome, Pal Joey, e põe Evans para exercer sua lábia de sujeito mulherengo para tentar estabelecer um triângulo amoroso, a começar por sua interação com a bela corista Linda English (Kim Novak) e com a socialite, viúva e voluptuosa Vera Prentice-Simpson (Rita Hayworth), que desperta nele interesses ainda maiores dos que a simples vazão de seus impulsos sexuais.
Hayworth era a figura com mais cachê do filme, fato isolado nas produções com Sinatra pós A Um Passo da Eternidade. Curiosamente, Meus Dois Carinhos é considerado por grande parte da crítica como o filme definitivo do ator, o ponto de partida para o brilho cinematográfico em paralelo ao sucesso já instalado na música. De fato, há um trabalho dramatúrgico bastante forte do intérprete, comparável em inspiração anterior somente a O Homem do Braço de Ouro.
O desenvolvimento do roteiro prioriza a sedução lenta e gradual. A persona de Joey é carismática, mas seus encantos ganham a atenção de Simpson de um modo vagaroso, como nos romances clássicos. Entre agressividade e desejo que ocorre o primeiro enlace entre ambos, escondendo uma intenção escusa do protagonista, movido pela ganância e enriquecimento próprio.
O decorrer da fita, em 1957, mostra uma discussão involuntária sobre o machismo, proveniente do comportamento do protagonista ao ver um de seus dois amores se exibir para uma platéia, ávida por ver a carne desnuda de English no auge da forma. A demonstração do ciúmes em uma figura tão desprezada por ele serve de paralelo com algo comum a sua época. O roteiro pontua a atitude como abusiva, surpreendendo o seu espectador por dar vazão, ainda que timidamente, a este tipo de discussão.
Joey é um figura repleta de contradições, nuances e desejos que dificilmente seriam alcançados. Tanto no anseio por abrir sua casa noturna personalizada, quanto a fantasia poligâmica presente em seus desejos. Apesar do desfecho aparentemente feliz, a trajetória do herói é mais próxima do agridoce, mostrando de maneira leve que as suas ações tem como resposta reações intempestivas e frustantes por parte do destino, que certamente teria um desfecho mais agressivo não fosse esta uma obra musical. Ainda assim, contestatória para os padrões de sua atualidade e simpática para as plateias mais conservadoras.
A era de ouro… Quando Hollywood era mais Hollywood, os filmes mais Cinema e menos como a linha de montagem exibida em Tempos Modernos; tudo na América era digno de celebração e orgulho, e a sociedade do espetáculo crescia. O próprio americano confiava mais em seu país e nos valores da nação do que hoje em dia. Se hoje os EUA ainda ostentam a imagem de grande pátria, são filmes como Marujos do Amor a chave para essa reputação de país heroico e impávido colosso. A glória tinha mais pompa: As cores, mais vibrantes; tudo parecia ser mais original (o que, a bem da verdade, não era tanto assim) e os filmes de estúdio, rodados em grandes cenários, começavam a ganhar o mundo. Foi nos triunfos de John Ford e companhia que Hollywood se sabotou, aos poucos, com seu próprio estilo faraônico do fazer cinema consumindo suas eras, suas divas, seus astros e seus valores. O entretenimento era mais puro, e a inocência na tela, como muitos diálogos de Marujos nos faz lembrar, era aquilo que comandava o show.
O gênero musical é a síntese dos anos trinta ao cinquenta, afinal o cinema tinha que alegrar o mundo enquanto a 2º Guerra explodia. As moças ainda não usavam jeans e os homens não tiravam seus chapéus nem se fosse pra dançar. Também era comum os musicais apresentarem uma metalinguagem simples, (um filme dentro de outro) ainda sem se aprofundar no subtema. Nunca, e repito: nunca o cinema soube marcar tão bem uma época, ainda refém dos costumes do século 19, estilizando (com uma grande liberdade artística de expressão) figurinos e ambientes inesquecíveis. Nem mesmo Fellini resistiu a moda dos grandes cenários e rodou em 1973 seu Amarcord, uma das melhores comédias da história, numa cidade de mentirinha. A própria composição visual do filme de 1945, de George Sidney, é de cair o queixo. As cores fazendo jus a fama da época, remetendo a paleta usada anos depois nos filmes de Nicholas Ray e Michael Powell, outros dos argonautas das naus do passado.
Em Marujos do Amor até a luz da lua parecia mais brilhante, como quando os três principais personagens se encontram, numa sala de visitas, e as cortinas laranjas são cortadas por um luar azulado, no clássico estilo homenageado com primor em 2011 em A Invenção de Hugo Cabret. Nos idos que o país defendia suas forças armadas, um garoto quer entrar para a marinha, custe o que custar. E cabe a dois marujos, vividos por Sinatra e Gene Kelly, levar o garoto a mãe. A partir dai, os dois mulherengos e a dona de casa se envolvem em torno de temas apresentados com uma naturalidade deliciosa, irreverente, mas com números musicais pouco inspirados e que, apesar da técnica, não chegam aos pés dos pés de Kelly e da diva Jean Hagen, em Cantando na Chuva (1952).
“Quer dançar? Quer dizer… eu gostaria se você quisesse, também.”
O filme acaba sendo um ensaio para um musical muito menor, mas melhor: Um Dia em Nova York, onde Kelly e Sinatra se juntam, de novo, para fazer quem não gosta do gênero, passar a gostar. Todavia, é no inofensivo e romântico Marujos do Mar, com um forte pano de fundo político para os mais atentos, aonde as cores têm mais tons, são mais quentes, mais vivas, e o visual exala um equilíbrio, uma leveza e um frescor despretensioso que os romances perderam ao longo do tempo. Ficou na memória, ou melhor: gravado em celuloide. Mas tudo se torna irresistível a medida que Gene Kelly, a lenda da dança, permeia um número ao lado deJerry, o ratinho,e outros desenhos animados. Uma cena fantástica que resume a essência (e a magia) do filme inteiro.
Fato é que a música, sendo a alma de um filme, torna-o um delírio, uma representação aumentada da realidade, e também nos faz amá-lo mais rápido, como bem canta Sinatra num solo de piano. Divertidíssimo, e simpático, o filme, marco de uma época, é a típica obra de estúdio que tenta agradar a todos, como quando os dois marinheiros, orgulhosos por serem quem são, tentam afastar um pretendente da mãe do garoto para preservar a mulher e competir apenas entre si por ela. Incrível como, antes, homens procurando por damas sob o luar não significava sexo, mas beijos, cantoria, jantares à luz de vela e romance – talvez até uma serenata, com sapateado completando a proposta divertida dos musicais; os musicais de era de ouro! Um charme incontestável.