Crítica | Jogos Vorazes: Em Chamas
Após o enorme sucesso do primeiro filme da franquia Jogos Vorazes, de 2012, temos em 2013 a sequência que dá continuidade à história de Katniss Everdeen (Jennifer Lawrence) e o planeta Terra em um futuro distópico. Após vencerem a edição anterior desafiando as regras do jogo, Katniss e Peeta Mellark (Josh Hutcherson) tentam viver o dia a dia conciliando a fama recém adquirida (e as vantagens dentro da sociedade que ela trouxe) e o incômodo de estarem servindo à propagação de um modelo de sociedade que consideram injusto.
Não é segredo que a franquia Jogos Vorazes é um misturado de influências ocidentais e orientais, que passam desde a sociedade do espetáculo e seus reality shows até os gladiadores romanos, assim como influências da cultura pop como Battle Royale e Fahrenheit 451. Também não é segredo que o livro é mais um dos tantos voltados para o público infantojuvenil, “voraz” consumidor do gênero desde que Harry Potter criou esse filão e Crepúsculo consolidou. Porém, o que difere Jogos Vorazes dos dois anteriores é justamente a profundidade da história e o contexto político e social ali inseridos, que podem levar o jovem de hoje a questionar algumas das estruturas existentes na sociedade moderna.
Voltando ao filme, os administradores da Capital (talvez uma relação com “O” capital) percebem o potencial revolucionário de Katniss e tentam eliminá-la de forma a não deixar que ela vire um ícone, pois revoltas começam a se espalhar, gerando uma inquietação de que os Jogos deveriam servir para camuflar, bem ao estilo “pão e circo” romano, função que a TV realiza atualmente. A protagonista, que não percebe o que se passa a seu redor, tenta ao máximo proteger sua família fazendo o que a Capital demanda, servindo de vitrine e posando frente a plateias famintas e sujas que agora não mais aplaudem esse espetáculo vazio, e quando não mais compra essa fantasia, tem como troco a repressão, em guardas cujas roupas remetem também aos Stormtroopers do Império de Star Wars. Ou seja, a alusão é clara: Ou você se submete, ou será punido.
Após uma tentativa de acabar com o ícone dos revoltosos, a Capital subverte as regras e manda diversos vencedores para uma edição especial dos Jogos onde tentam matá-la. Porém, a conspiração contra a sociedade de Panem já é tão grande (um dos pontos fracos do filme, por justamente parecer que é fácil montar uma revolução e se infiltrar nos altos quadros governamentais em uma sociedade totalitária) que os Jogos são interrompidos para se começar efetivamente a luta contra esse modelo de sociedade.
Flertando com conceitos históricos sedutores, como “revolução” e a clássica luta do oprimido x opressor ao molde “Davi e Golias”, Jogos Vorazes recicla de maneira inteligente e compreensível a velha luta pela liberdade e pelo pão dos trabalhadores contra um sistema violento. Porém, ao tratar tudo isso de maneira romântica e um tanto quanto apolítica, o filme perde em mostrar justamente ao seu público a importância do debate político para se construir alternativas ao modelo de sociedade vigente, e que nada vem de uma nave salvadora com revolucionários já prontos, e sim que eles são construídos no dia a dia, aproveitando oportunidades que aparecem. Nesse aspecto, falta uma construção maior do personagem Plutarch Heavensbee (Philip Seymour Hoffman), não necessariamente de sua construção intelectual, mas de como ele chegou tão perto do poder, conseguindo enganar tanta gente por tanto tempo.
Porém, um dos pontos fortes do filme, além do contexto político, é também ter como protagonista forte uma mulher que não depende de nenhum homem para salvá-la, e que faz seu próprio destino. Também coloca Peeta como um homem coadjuvante e inverte papéis clássicos de gêneros ao colocá-lo como filho do padeiro que faz docinhos, evidenciando esse preconceito em um diálogo de Katniss com o presidente, que experimenta um desses doces e pergunta se foi sua mãe quem fez, quando na verdade foi Peeta. Como a questão de gênero é um tabu grande inclusive dentro da esquerda revolucionária clássica, Jogos Vorazes contribui com a desmistificação e quebra de valores preestabelecidos dos gêneros dentro dos filmes de Hollywood, ao contrário do que faz, por exemplo, a saga “Crepúsculo”, em que a protagonista tem como maior problema existencial a quem será submissa, e não garantir o sustento da família. Da mesma forma, Gale Hawthorne (Liam Hemsworth) não é o salvador, apesar de fazer o tipo. Também foi interessante a escolha de Jeffrey Wright como Beetee, ou seja, um ator negro interpretando um gênio, fugindo totalmente dos clássicos estereótipos do cinema, tanto que alguns fãs da franquia chegaram a chiar, já que, nos livros, Beetee, ao contrário de Rue, não é descrito como negro. Ou seja, aquele racismo velado do público dito “nerd”, branco, de classe média aparece, o que pode suscitar debates interessantes.
Como mostra a bilheteria e os livros vendidos, Jogos Vorazes é um sucesso dentre um público por vezes considerado alienado e que dispensa assuntos ditos “sérios”. Vivemos em uma época em que até mesmo esses assuntos precisam ser introduzidos aos jovens na forma de um sucesso de Hollywood, em vez de um livro velho e chato de Lênin que nunca abririam. Isso por si só mostra a dificuldade de se romper com essas barreiras em uma sociedade “livre” como a nossa, quanto mais na retratada no filme. Porém, a franquia talvez sirva como pontapé inicial para muitos jovens terem seu contato, da forma que conseguimos hoje, com algo além da massificação alienante da mídia e da indústria cultural.
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Texto de autoria de Fábio Z. Candioto.