Tag: Lúcio de Castro

  • Crítica | Geraldinos

    Crítica | Geraldinos

    af8b335f-1e58-3906-9656-34a556bd5bc7

    Localizado bem próximo do campo do Maior Estádio do Mundo, com pouquíssima distância entre a torcida fanática por seu time ou seleção, se situava a lendária seção da Geral, um lugar desconfortável, apertado pela quantidade enorme de gente e repleta de paixão, alegria, folclore e tradição. Geraldinos explora essa faixa da torcida que frequentava o setor barato e popular, onde habitavam os adeptos que amavam seu objeto de culto e, claro, o patrimônio carioca resultante no Estádio Mario Filho, o Maracanã.

    Pedro Asbeg e Renato Martins voltam a atenção de suas câmeras para a parte de dentro do estádio, raramente enfoca jogadores e comissão técnica, mostrando o caráter do filme: a simplicidade do homem comum, evoluindo um pouco do conceito já mencionado no belo Democracia em Preto e Branco, dirigido pelo primeiro. Da parte dos entrevistados, há um estudo interessante sobre o perfil do homem que acompanhava seu time, assinado pelo jornalista Apolinho, que destacava a corneta feito por alguns.

    A maioria dos jogadores tinha uma estreita relação com os geraldinos, como Romário, que se permite falar que gostava de ser xingado pelos torcedores, fazendo disso combustível para superar seus próprios marcos enquanto atleta. Os frequentadores eram de diversas classes, mas normalmente muito pobres, como destaca o jornalista Lúcio de Castro, gente cujo alcance dos sonhos é muito pequeno, e que tinha naqueles momentos uma fuga de suas vidas difíceis, como se naquele curto espaço os sonhos não estivessem tão distantes.

    A troca entre torcida e jogadores envolvia uma trama de amor, ódio, cobrança e entrega, normalmente louvada pelos que adentravam o sagrado gramado do Maracanã. Pouco após os vinte minutos de exibição, se discute o papel político do estádio, desde a extinção do setor até a elitização da cidade como um todo, eliminando o caráter de reunião entre pobres e ricos no mesmo lugar, com a prática proibitiva aos que têm menos renda, movimento que começou antes das reformas recentes do campo, como dito pelo deputado estadual Marcelo Freixo e ressaltado pelos próprios torcedores, após 2005, ano do desfecho do setor.

    A realidade entre o futebol brasileiro e europeu não se reflete apenas na qualidade técnica e tática dos campeonatos, mas também da capacidade que os que tradicionalmente lotam o espetáculo têm financeiramente. Mesmo na Inglaterra, onde os ingressos são mais caros, há setores populares que foram eliminados nessa nova versão de futebol moderno implantada no Brasil, artifício que só funciona em tecnologia quando se trata de encarecer o produto, já que em termos de corrupção e amadorismo nunca houve tanta desfaçatez em exercer-se a desonestidade.

    A fala de Marcelo Frazão, que é o representante do Consórcio, que há pouco tempo o Maracanã exerce sobre a Geral, é emblemática, dizendo que visitou o lugar e o achou insalubre, vergonhoso, onde não se tinha visão do campo. De fato, a visão era prejudicada, mas não era com esse intuito necessariamente que o sujeito pagava aquelas poucas moedas que tinha para assistir a um jogo, já que os motivos variavam entre confraternizar, somente ver uma parcela do campo ou viver a adrenalina de um jogo de futebol in loco, aspectos que normalmente não seriam valorizados por um burocrata que pensa unicamente no lado monetário do esporte.

    As imagens de arquivo remetem a um tempo infelizmente morto, de uma época em que ser pobre e suburbano não era um pecado diante dos que mandavam no velho e bom Maraca. Hoje, o homem comum é relegado a acompanhar a sua paixão clubística no pay-per-view, isso quando consegue dinheiro para assinar esses pacotes, distante do projeto de cidade feita para os turistas, os mais ricos e abastados.

    A sensação de vibração e proximidade do suor e correria dos jogadores ajudava a aumentar a mística em torno do lugar, que se tornou sagrado desde a sua inauguração na Copa de 1950, a primeira ocorrida no Brasil, quando também abrigou a primeira final. A reportagem mescla imagens de um passado em preto e branco bastante distante, com o último Fla-Flu com a Geral. As histórias reais se misturam com a fantasia e alegria da contemplação participativa, em que os espectadores se enxergavam como parte integrante daquele show, e não apenas como plateia. Esse mundo mágico teve fim em 25 de abril de 2005, e a revolta se agravaria.

    Geraldinos poderia ser um ótimo filme sobre a memória afetiva do esporte. Mas seu caráter é maior que isso, sua intenção é destacar os desmandos dos mandatários e a evolução da exploração comercial do esporte bretão. O salto temporal, de 2005 para 2013 e 2014, mostra os mesmos torcedores populares tendo sua rotina de acompanhar o time em casa, ou nos bares, distante do gramado glorioso. A exposição desse terrível banimento do pobre, matando o efeito que existia, cobrando-se de 80 a 150 reais pelo espaço que há poucos anos chegava a ser um real, o lugar que era marginalizado, agora é dos grã-finos, do torcedor tipo plateia de teatro, letárgico, sem vida.

    O choro engasgado de Castro serve de símbolo da reação e indignação do povo, que é impedido de fazer sua festa. Apesar de algumas palavras positivas e otimistas, os momentos pré-créditos finais são bastante melancólicos e desesperançosos, contrariados apenas pelo belo conjunto de fotografias dos geraldinos, que eram a alma da espetacular exibição do futebol carioca nos tempos áureos, e que, insistentemente, se obrigam a ainda acompanhar seu objeto de devoção, ainda que distantes do campo dos sonhos, já inexistente.

  • Crítica | Memórias do Chumbo: O Futebol nos Tempos do Condor

    Crítica | Memórias do Chumbo: O Futebol nos Tempos do Condor

    Memorias do Chumbo 1

    Unindo dois assuntos primos, o jornalista Lúcio de Castro organizou quatro episódios exibidos no canal ESPN Brasil, onde seria explorado a proximidade entre as ditaduras direitistas que tomaram a America do Sul, e o futebol. Memórias do Chumbo – O Futebol Nos Tempos de Condor. As sedes dos estudos seriam Argentina, Uruguai, Brasil e Chile, e escrutinaria a influência semelhante ao ópio que o esporte – e mania – faria no povo, assim como o uso indiscriminado deste como arma governamental.

    A análise sobre o regime que tomou a Argentina começa por depoentes de idades variadas, alguns que presenciaram o início da tomada do poder, e outros que relatam as experiências de pais e outros parentes. O enfoque dado as gravações é muito mais emocional que didático, graças a sensibilidade do feitor em entrevistar as pessoas próximas das vítimas dos desmandos dos militares, sempre ligados ao futebol. No episódio Argentina a Operação Condor é esplanada, com o detalhamento da completa falta de educação, crueldade e violência, mesmo a pessoas que nada tinham a ver com os desígnios socialistas.

    A Copa de 1978 pareceu ao grupo de poderosos uma boa alternativa para retirar da opinião pública mundial a imagem de uma país opressor, mesmo que o custo fosse absurdo, beirando os setecentos milhões de dólares, incluindo nesta equação, o então presidente da FIFA, o brasileiro João Havelange, recentemente investigado por gigantescos escândalos de corrupção. É curioso como a uma distância mínima dos estádios, onde a torcida pulava e gritava, comemorando com Villa, Houseman e Kempes, havia salas de tortura, onde os cidadãos eram humilhados, fazendo daquela conquista a mais contestada da história das Copas. As falas das vítimas revelam um temor ainda existente, mesmo após décadas do acontecido, fortificando a sensação de que eram os militares os “donos da morte” dos prisioneiros, que nada fizeram, a não ser discordar do modo de governo.

    No episódio do Uruguai os depoimentos começam com as falas de Eduardo Galeano, com a revelação de que o país era campeão em torturados e mortes durante os anos negros da América Latina, inclusive com participação, conivência e patrocínio do governo brasileiro. Segundo o autor de Veias Abertas da América Latina, a tortura não era útil para colher informações, mas sim para incutir medo na população e em qualquer oposicionista, semeando e disseminando o pânico.

    O primeiro momento em que Castro se permite exibir-se para a câmera de Rosemberg Faria, é a conversar com Galeano, com quem tinha uma amizade bastante próxima. A intimidade faz com que os relatos do escritor sejam ainda mais intensos, agravados pelos detalhes do tratar dos poderosos, associando a esquemas de supostos favorecimentos, como num campeonato nacional para o Defensor Sporting, e um mundialito para a seleção uruguaio, associado a um campeonato inventado para desvirtuar a atenção do povo. Curioso é que nos relatos de Eduardo, revela-se uma das primeiras e mais notórias ações populares de torcida/sociedade, que gritava quase em uníssono “se va acabar, se va acabar, la ditadura militar”, fazendo da plebe finalmente um braço contrário aos desejos dos poderosos.

    Chega de Saudade, executada por Tom Jobim remete ao fim dos anos cinquenta, que apresentavam uma nova era de glorias para os brasileiros, especialmente pela Bossa Nova. Na esteira do receio de os discursos de Ernesto Guevara tornar-se verdade, e apoiado pelo presidente dos Estados Unidos Lyndon Johnson, os militares assumem o poder após a renúncia de Jânio Quadros. Subitamente, toda a informação passaria a ser controlada pelos militares recém “empossados”.

    No futebol não foi diferente, visto que ocupava uma boa parte do imaginário popular. Grande parte dos mandantes de federações estaduais, era aliada ou amiga dos poderosos, homens de confiança, que ajudava a alastrar a mentalidade dos governantes. Segundo o historiador Carlos Fico, o número menor de mortes em comparação com os outros pais do cone sul não fazia dos ditadores brasileiros menos implacáveis, piorando muito pela mentalidade reacionária se propagar no imaginário civil também.

    A perseguição ao técnico João Saldanha é revelada, focando em práticas covardes dos censores, que o encaravam como informante comunista, com a suspeição de que ele fornecia documentos a estrangeiros nas viagens com a seleção canarinho, pós Copa de 1966. O extenso monitoramento abarcava toda a população, o que vinha de encontro também ao futuro time tricampeão mundial com a introdução de um major dentro da comissão técnica.

    A tramoia do episodio varia entre os ditos sobre a guerra psicológica via slogans, como o “Brasil, ame ou deixe-o”, e claro, os relatos de torturados, como o de Cid  Benjamin, professor e jornalista, motivador do grupo MR-8, que sequestrou o embaixador estadunidense Charles Elbrick. Os detalhes sobre as condições insalubres do cárcere assustam, especialmente pela sujeira, frequentemente deixando os presos chafurdados em seus próprios excrementos.

    O estudo piora com a exposição da Operação Condor, onde se exportava tecnologias de tortura, pontuadas emocionalmente pela narração do funcionário da ESPN Luis Alberto Volpe, que imprime um caráter de denúncia mesmo em questões não tão espinhosas, agravado em momentos como nestas narrações. O episódio se encerra com a participação de Galeano expondo alguns detalhes das atividades de João Havelange e seu então genro, Ricardo Teixeira, que lucravam muito ainda nos tempos de chumbo, o que agravava ainda mais o martírio dos brasileiros comuns.

    O espécime que analisa o quadro do Chile começa mostrando o motim que vitimou Salvador Allende, um complô que – mais uma vez – envolvia os governantes brasileiros, sendo a embaixada palco até de reuniões dos golpistas. O roteiro é prodigioso ao comparar a hipocrisia dos atos com o bom mocismo das atitudes pragmáticas dos homens fortes do Mercosul, exibindo a contradição entre teoria e prática.

    O episódio é tomado por muitos depoimentos dos ex-jogadores da seleção chilena, que assumiram se sentirem como palhaços, graças a prática comum da ditadura em tornar o esporte como um circo. Ao mesmo tempo em que os atletas eram “protegidos”, seus familiares não o eram, então qualquer ato de rebeldia sofria represálias por torturas indiretas, a entes queridos, incluindo até suas mães.

    Mas foi em um jogo, que uma das maiores manifestações ocorreu, ainda que por “acaso”. Um dos jogadores, que exercia mal seu papel tinha seu nome gritado, por coincidência, homônimo do ditador, e o “Fora Pinochet” tomou os pulmões das arquibancadas, que refutavam claro, um dos soberanos mais nefastos daqueles tempos.

    Apesar de não haver uma ordem cronológica prévia para assistir a Memórias do Chumbo, é interessante tomar o capítulo chileno por último, por ser este encerrado de modo emocional, com depoentes prestes a chorar, em virtude do genocídio que ocorreu em seu país, quando os atletas corriam em atividades desportivas, com a certeza de que eventos como o túnel que ligava o campo de futebol a um local de fuzilamento, não se repetiria. O costume no Chile, Uruguai, Argentina e outros países é o de total desprezo por quem defende tais regimes, até por valorizar os homens que lutaram em favor da vida. Apesar do otimismo em seu final, não há qualquer aplacamento da realidade, ao contrário, a apresentação é visceral, informativa e emotiva, da parte de um estudioso que leva a sério o ofício de informar o espectador a qualquer preço.

    Episódio Argentina

    Episódio Uruguai

    Episódio Brasil

    Episódio Chile

    Facebook –Página e Grupo | TwitterInstagram.