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  • Crítica | Projeto Gemini

    Crítica | Projeto Gemini

    Projeto Gemini é um projeto de blockbuster que reúne em si muitos projetos que a priori, não tem muito a ver uma com a outra. A primeira delas é a dificuldade pós As Aventuras de Pi que Ang Lee tem em emplacar um filme elogiável, a segunda tem Will Smith como protagonista, vivendo o assassino do governo americano e atirador de elite Henry Brogan (seus últimos produtos também não foram muito bem recebidos) e claro, a nova tecnologia em 3d, que promete entregar cenas de ação mais nítidas.

    No Brasil, infelizmente o filme é exibido em 60 frames por segundo ao invés de 24, como é o usual, mas não consegue corresponder ao que a tecnologia nova pede. Com todos esses fatores, o projeto tenta parecer algo além do cinema de ação e aventura genéricos, mas esbarra em questões básicas. Já na gênese do filme, há uma estranha (e péssima) referencia involuntária. Lee faz as vezes de David Ayer e começa mostrando Smith preparando seu rifle para um tiro a distância como foi em Esquadrão Suicida, mas aqui as intenções são diferentes, Henry diferente de Floyd Lawton é um homem de escrúpulos, só mata bandidos e terroristas e a comando do governo. Mal sabe ele (ainda) que há mais semelhanças com o Pistoleiro do que a premissa prega.

    A culpa do personagem é um bom aspecto, dá a ele humanidade e até um pouco de profundidade, pois mostra ele como um sujeito que tem problemas em aceitar sua condição, pesando é claro as mais de setenta mortes que já cometeu. Evidentemente que há uma conspiração em torno do personagem principal, que passa a ser alvo de perseguição de seus antigos superiores.

    As ideia do roteiro de Billy Ray, Darren Lemke e David Benioff (sim, o mesmo de GOT) são boas, mas a mão pesada do diretor e a quantidade enorme de coincidências e relações artificiais pesam contra o filme. A união dele com Danny Zakarweski, personagem de Mary Elizabeth Winstead não parece realista, tanto na rivalidade quanto na parceria dos dois.  Os demais personagens secundários aparecem e desaparecem com uma conveniência monstruosa, e alem disso, ainda se apela para um clichê que já era batido nos quadrinhos e cinema dos anos 90, e que hoje, é ainda mais obvio e raso, a questão da clonagem.

    A exibição em 60 frames demora a acostumar o olho, mas tirando esse inconveniente, a violência e as sequencias de ação são bem legais. Lee emula bem o estilo de Paul Greengrass e mistura com elementos dos filmes de David Leitch e Chad Stahelski (De Volta ao Jogo, Hobbs e Shaw, Atômica e John Wick 3), ainda que não tenha o mesmo brilhantismo, até porque a maioria das falas são baseadas em frases de efeito, e diferente das fitas de ação da dupla de diretores citadas, esse é um produto audacioso, que mira a alta ficção científica, sem jamais alcançá-la.

    O Gemini que está no título é um grupo paramilitar estranho, comandado pelo vilão que Clive Owen vive, o senhor Clay Varris, e impressionantemente os agentes americanos super bem treinados acham estranho que ele e sua equipe lance mão de clones, mesmo que uma variação da palavra “gêmeo” sempre estivesse na alcunha do grupo, desde os anos noventa. Aliás, o fato dos heróis demoraram a chegar a conclusão de que o homem que os persegue ser de fato clone do personagem principal não faz qualquer sentido, e os faz parecer burros.

    Ao menos, as perseguições de carro são alucinantes, bem construídas e encaixadas. Há também uma preocupação bem moderna, de fazer com que as incursões dos personagens pareçam verossímeis, mas até esses momentos são cortados pela artificialidade que impera em toda historia, com a presença de um boneco digital que não parece nada realista. A tecnologia de rejuvenescimento e de dublê digital é fraquíssima nesses combates, e piora demais no final, quando ocorre o epílogo.

    As ideias que permeiam Projeto Gemini misturam a pretensão de soar tecnologicamente na vanguarda, com a utilização de um tema já bem gasto que é a questão da clonagem, assusta como ainda se aposta nesse filão, assim como também surpreende que o longa tenha tantas semelhanças com Star Wars: Episódio I, A Ameaça Fantasma, no sentido de ser um filme que tenta parecer avançado visual e tecnologicamente e com fragilidades de concepção textual, com a pequena diferença de que Will Smith parece acreditar no filme, enquanto todo o resto da produção só parece querer entregar um produto puramente comercial.

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  • Os 10 Grandes Beijos do Cinema

    Os 10 Grandes Beijos do Cinema

    Segundo o antropólogo inglês Desmond Morris, foi o costume materno de se mastigar a alimentação antes de passar à boca da prole, em tempos mais ancestrais, que provavelmente derivou o hábito do que, no Brasil, é nome até de doce. Nada romântico, não é mesmo? Mas todo mundo lembra quando foi seu primeiro beijo, talvez até o gosto dela, se rolou um frenesi, ou não. Poucos filmes conseguiram traduzir na tela a sensação desse momento. Listamos alguns que chegaram lá.

    Branca de Neve e os Sete Anões (William Cottrell, David Hand, Wilfred Jackson, Larry Morey, Perce Pearce e Ben Sharpsteen, 1937)

    O beijo que vence a morte, num clássico memorável dos estúdios de Walt Disney além de qualquer relatividade sobre grado ou agrado. Saber que a maioria de nós estará viva para atestar novamente sua qualidade no centenário da obra já seria algo maravilhoso.

    O Demônio das Onze Horas (Jean-Luc Godard,1965)

    O beijo desesperado que vence as guerras, pura poesia convertida em imagens, algo que os cinéfilos mais jovens não tem nem paciência pra experimentar. Uma pena. O Demônio das Onze Horas é um clássico forrado de exuberância e um gosto embriagante de Cinema.

    Meu Primeiro Amor (Howard Zieff, 1991)

    O beijo inocente que começa as guerras. É o beijo que solidifica a infância como fase da descoberta sobre quase tudo o que nos faz ser quem somos. É em Meu Primeiro Amor que o toque labial ganha sentidos tão primordiais e sensíveis que nenhum outro filme americano ou não, até hoje, conseguiu expressar tão bem.

    O Guarda-Costas (Mick Jackson, 1992)

    O beijo da impossibilidade de dois corpos ficarem separados. Beijo cafona e deselegante, caso não fosse o ângulo apropriado e a trilha-sonora composta para um filme mais vendida da história, mas como não sentir a vibração da cantora e do seu segurança correndo, de braços abertos, contra a iminência da separação?

    Ghost: Do Outro Lado da Vida (Jerry Zucker, 1990)

    O beijo de alma. Sam e Molly foram um dos grandes casais dos anos 90, rivalizando talvez com o Jack e a Rose de Titanic, só que nem o icônico beijo abraçado na proa do fatídico transatlântico consegue ser mais simbólico a um esperado amor eterno que o beijo etéreo de dois espíritos, absoluta e infinitamente apaixonados.

    Beleza Americana (Sam Mendes, 1999)

    O beijo da culpa. O beijo do racista branco na negra que o criou, ou, no caso, de um coronel homofóbico na boca do vizinho que almeja e não se permite ter, além da carne, por inúmeros motivos secretos. Beleza Americana busca, sobretudo, a união entre céu e inferno num país dividido em todos os sentidos chamado América.

    Homem-Aranha (Sam Raimi, 2002)

    O beijo da juventude. Uma sessão da tarde frenética interrompida logo após uma cena de ação do herói com bandidos, num beco escuro, salvando a mocinha quando esta lhe tasca um beijo irresistível, de ponta-cabeça. Mais contextual não dá, não só ao herói aracnídeo dos quadrinhos, mas ao próprio revirar hormonal da molecada.

    A Cruz dos Anos (Leo McCarey, 1937)

    O beijo da despedida, por uma vida inteira. Como o próprio cineasta Stanley Kubrick apontou, eis um filme que tira lágrima de pedra, e a cena final na estação de trem com o beijo dos dois idosos é destruidora, incidindo sobre a passagem do tempo, e como aquilo que é verdadeiro resiste diante do fim, diante de tudo.

    O Segredo de Brokeback Mountain (Ang Lee, 2005)

    O beijo da saudade, por uma vida inteira – e que quase quebrou o nariz de Heath Ledger. Brokeback Mountain, hoje merecidamente tido por clássico do século XX, é extremamente sutil em sua verdadeira mensagem de seguir o próprio coração mesmo, seguir o instinto natural e ver o que acontece a partir disso. Metáfora sobre os amores incompreendidos.

    A Um Passo da Eternidade (Fred Zinnemann, 1953)

    O beijo cinematográfico definitivo.

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  • A Gastronomia e o Cinema

    A Gastronomia e o Cinema

    Cinema e a Gastronomia - destaque - chocolate

    Ao longo da História, as refeições e o ritual que as cerca vieram se estabelecendo como representações de estratificação social e de relações de poder. Além de servirem como ponto de intermediação para propostas ou fechamentos de muitos negócios, este ritual está também muito ligado ao caráter de confraternizações afetivas, e mesmo quando, se situa na rotina do dia a dia, há na refeição um sentido simbólico de repartir e de expressar valores culturais.

    Portanto, as refeições constituem-se também, e talvez principalmente, em momentos construtores e comemorativos de memórias afetivas. A sua força está, outrossim, ligada aos dois sentidos que compõem as capacidades mais primitivas do Sistema Nervoso Central: o paladar e o olfato. Os dois interagem e se complementam. Você sabia que o gosto da canela, sem a atuação do olfato, seria totalmente diferente daquele que imaginamos?

    Os alimentos, a forma como são preparados e a “cerimônia” que envolve a sua degustação, constroem memórias indeléveis na história da vida de cada um!

    Por isso, escolhi algumas belíssimas histórias captadas pela câmera e projetadas na telona, onde o alimento é protagonista de momentos marcantes que desencadeiam, dialogam ou comemoram grandes mudanças.

    Quando penso na sétima arte como testemunho de uma mudança significativa das percepções afetivas (antes aprisionadas a paradigmas culturais e religiosos), através de todas as sensações que são desencadeadas na aceitação do prazer proporcionado pelo paladar… Quando penso na sétima arte trazendo um desfile de alimentos preparados com a minuciosa delicadeza de um ourives, e servidos como rimas épicas de um poema que transborda a alma…

    Quando penso no lento e profundo despertar de expressões, recebendo do líquido que escorre pelas taças de cristal, o beijo da liberdade de espírito, ainda sob a lente da sétima arte… Eu suspiro e me entrego ao dinamarquês A Festa de Babette (1987), com a brilhante direção de Gabriel Axel, primorosa atuação de Stéphane Audran, fotografia impecável e roteiro adaptado de um dos contos do livro Anedotas do Destino (1958), da inspirada escritora Karen Blixen, de quem uma das obras já havia sido adaptada para Entre Dois Amores (1985, Sidney Pollack).

    Babette chega a um vilarejo, na Noruega, fugindo de uma guerra civil na França, e se aloja na casa das duas filhas de um pastor. Solteironas e ligadas a padrões de conduta que têm como alicerces dogmas religiosos fortemente aprisionadores dos prazeres a vida (assim como o resto da comunidade), elas vão provocando em Babette uma imensa vontade de ampliar certas convicções, e abrir os olhares para a liberdade de todos os sentidos. Como ex-chef de um grande restaurante parisiense (fato até então desconhecido para todos), alguns anos após sua chegada, Babette toma conhecimento de ter ganho na loteria, e resolve investir todo o seu prêmio na elaboração de um banquete. Na modesta sala de jantar das filhas do pastor, inicia-se um ode à arte, à cultura e ao paladar!

    À arte porque, além de o diretor Axel ter conseguido uma magnífica composição entre os gestos, a música e a fotografia, a mesa encontra-se arrumada como o cenário do mais esplendoroso espetáculo, onde cada peça é uma obra de arte, desde a toalha, aos copos, porcelanas e talheres, e os pratos… Ah, os pratos são verdadeiras pinturas e esculturas!

    À cultura, porque o general francês vai descrevendo os alimentos e sua harmonização com a carta primorosa dos vinhos que os acompanham, ao mesmo tempo que tece uma ponte entre as duas culturas ali presentes.

    Ao paladar… (é incrível como alguns sabores e aromas quase rompem a tela, nos tocando os sentidos e a alma)… porque é sedutora a onda de vapor que se desprende do consumê servido inicialmente, uma sopa de tartaruga onde a carne da mesma mergulha num caldo de legumes, cortado levemente pela acidez do limão siciliano e fortificado pela redução do vinho madeira. Em seguida, uma massa fermentada e dourada na manteiga, forando pequenas panquecas (blinis), é coberta com creme azedo e caviar de Esturjão, para formar a receita da culinária russa, Blinis Demidoff. E eis que chega a grande estrela do jantar (se é que a algum dos pratos caberia um papel secundário)! Digo “estrela”, porque toda a refeição é minuciosamente planejada numa afinada curva de sabores, textura e aromas, em cujo centro se encontra o pico das nuances marcantes, por sua complexidade profunda. O Cailles en Sarcophage apresenta a refinada e amanteigada crocância de um pequeno ninho de massa folhada, onde descansa o dourado da codorna, desossada, adormecida no Cognac e recheada com foi gras.

    Assim como a cereja dá o toque final ao bolo, este soberbo presente à visão e desafiador do olfato, vem coroado com uma redução e vinho branco, trufa preta e chapéu de champignon. Há ainda o toque do óleo do amendoim, do salsão e da pimenta-do-reino, suspirando em meio a todos os ingredientes. Então Babette atenua a exaltação do paladar, servindo uma refrescante salada de endívias, envoltas no equilíbrio das nozes picadas, molho de mel e aceto balsâmico. O doce que aqui já começa a ser sugerido, explora a sua plenitude na sobremesa Baba au Rhum, que se trata nada mais nada menos de um Savarin (um bolo simples) coberto com uma calda onde a casca ralada da laranja e do limão, o pau de canela, o rum, o açúcar e o licor de laranja, formam deliciosa ciranda de sabores.

    A Festa de Babette

    Babette sabe, como poucos, preparar um espetáculo que desperta todos os sentidos e provoca o desabrochar das mais profundas emoções, adormecidas num canto da alma! É preciso conhecer os segredos contidos na alquimia de cada ingrediente, cada tempero! E Papus Vassilis (Ieroklis Michaelidis) é um mestre no uso dos temperos e no conhecimento sobre o que estes podem amenizar ou enfatizar no comportamento do ser humano. Ele é um filósofo da culinária, construtor de metáforas que despertam a curiosidade e paixão de seu neto Fanis (Georges Corraface), quando faz analogia entre a importância dos astros (Fanis adora astronomia) e os elementos que os constituem, com a função de cada tempero dentro de um prato.

    Tassos Boulmetis, em O Tempero da Vida (2003) fala dos conflitos geopolíticos (Fanis e seus pais, acabam sendo deportados da Turquia, terra natal de seu avô, com quem vivem em Istambul), das relações humanas (há uma profusão de cenas em volta de encontro e reencontros familiares e afetivos) e, como coluna vertebral e simbólica de todo o enredo, da gastronomia, levando-nos, desde a escolha dos ingredientes, a sua preparação e o ato que finaliza este processo, numa confraternização que desperta os sentidos do corpo e as emoções da alma.

    O filme peca em momentos que a dinâmica se perde na repetição de ideias, deixando de explorar alguns pontos que, sem dúvida, lhe imprimiriam mais graça e profundidade. No entanto, se você puder relevar algumas sequências e se concentrar nas cenas poéticas e pertinentes que permeiam a história, encontrará neste longa algumas inspirações, como por exemplo as conversas entre Fanis e seu avô.

    Vassilis conta que: o sal é essencial à vida e à comida; a pimenta é quente e queima como o sol, e por isso vai bem em todas as comidas; o leite e o açúcar são os primeiros alimentos da vida… de alguma forma, ele coloca a canela como protagonista neste diálogo de temperos e emoções, quando explica que, por ser um tempero muito forte e deixar as pessoas introspectivas, o cominho não deve ser usado num almoço de família, mas substituído por canela, que é doce e amarga como as mulheres e que faz as pessoas olharem umas nos olhos das outras. É exatamente a canela que faz toda a diferença no preparo dos keftedes (versão grega das almôndegas) quando Vassilis propõe que ela seja adicionada às bolinhas de carne moída, misturadas a um pouco de miolo de pão, alho, salsa e outros ingredientes. E os molhos? Ah… “os molhos suavizam qualquer receita! Quando não usam molhos na comida, sempre exageram nas conversas.”

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    Mas não são apenas os ingredientes (em especial os temperos) que têm a capacidade de criar caminhos em nossa alma! Também os sentimentos que os conduzem no momento do preparo parecem transpor qualquer barreira física, e invadem o estado de espírito de quem saboreia o alimento.

    Sim, é sobre isso que nos fala Laura Esquivel, em seu romance Como Água para Chocolate, o qual foi transformado num filme homônimo, em 1992, com direção de seu marido, Alfonso Arau!

    Tita (Lumi Cavazos) cresce em meio à panelas, e entrega-se a estes momentos de uma forma tão intensa quanto ao amor que sente por Pedro (Marco Leonardi). Apesar de correspondido, viver este amor lhe é negado, pois Tita, por ser a mais nova das três filhas de uma viúva, numa pequena fazenda mexicana do século XX, se vê obrigada a seguir a tradição de cuiar de sua mãe até a morte. Assim, combina-se o casamento de Pedro com Rosaura (Yareli Arizmendi), sua irmã, e ele aceita, por ver nisso a única possibilidade de permanecer perto de sua amada. Acontece que o coração de algumas pessoas estabelece um pacto, imune ao tempo e às circunstâncias, por isso o amor entre Tita e Pedro permanece intato, não obstante o casamento dele com Rosaura, e um dia o rapaz leva rosas para a moça de coração apaixonado.

    É a inabalável força desta paixão e o intenso desejo pelo homem da sua vida, que Tita coloca no preparo das codornas ao molho de pétalas de rosa. Note-se que ao recebê-las, as flores têm uma coloração rosa, que se transforma num intenso vermelho, quando Tita vai usá-las no prato. É servida uma fantástica composição do amanteigado dourado da pequena ave, beijando o carmim das pétalas dispostas sobre a porcelana, junto ao purê de castanhas portuguesas, adocicado pelo mel e pelo anis estrelado, com um leve e acalorado toque de pimenta. E então… quando este alimento é levado à boca e abraçado pelo paladar, uma onda de voluptuosa sensualidade toma conta do espírito e do corpo daqueles que o experimentam!

    tita

    Envolvendo também valores familiares e tradições, além de outros elementos, é a trama do filme Comer, Beber, Viver (1994), da primeira fase do diretor Ang Lee. E mais uma vez a comida aparece como fonte inspiradora e celebradora das relações, atuando como linguagem da alma, código de sentimentos ofertados e compartilhados.

    É assim que o alquimista culinário Chef Chu (Sihung Lung) lida com a arte na cozinha: com a mesma entrega e sensibilidade que se constitui condição sine qua non para a arte de viver!

    As três filhas de Chu enfrentam conflitos existenciais em Taipé, capital de Taiwan, e Chu lhes oferece todo o acolhimento de um coração fraterno, nas refeições que prepara aos domingos, quando a família se reúne em torno da mesa, entregando-se ao mágico prazer dos ingredientes que este poeta da gastronomia manuseia e mistura com sublime inspiração.

    Entre os pratos que dispõe sobre a mesa farta, convidativa e representativa da cultura chinesa, destampa-se a cesta que havia cozinhado, no vapor, a fina massa dos guioza, cujo recheio de carne de porco murmura a conversa entre o gengibre, o alho, a cebolinha, o óleo de gergelim, o vinagre de arroz e o molho de soja, com que fora temperada.

    ang lee

    Ang Lee, um ano antes, já ensaiara a sua devoção à arte da gastronomia e sua sabedoria em captar o mágico sentido do alimento, em O Banquete de Casamento.

    banquete de casamento

    A propósito daqueles que possuem o gosto e a sensibilidade em dirigir cenas cuja áurea se intensifica de tal forma, que nos sentimos tocados pela comoção dos personagens e invadidos pelos aromas e sabores, não poderia deixar de citar Lasse Hallstrom e seu envolvente A 100 Passos de um Sonho (2014), cujo protagonista, o jovem Hassan (Manish Dayal) cria diálogos entre o requinte da culinária francesa e a explosão dos temperos indianos.

    100 passos de um sonho

    Hallstrom, em 2000, coroara o chocolate com toda a magnitude que lhe é legítima, ao conceber Vianne Rocher (Juliette Binoche) como a mulher que se muda, com sua filha, para um fictício lugarejo na França, e desperta o aconchegante afeto e a estimulante libido de seus moradores, através do encantamento que coloca no manuseio deste ingrediente, trabalhando sua textura, temperatura e nuances de sabor.

    Em Chocolate, há cenas em que a tela quase se derrete e nos toca os lábios, transportando-nos ao deleite do paladar e à liberdade dos prazeres, antes aprisionados em algum canto de nossos medos. A estrela das estrelas é o chocolate quente, saboreado, entre outras pessoas, pela doce e melancólica Armande (Judi Dench), desabrochando a intensa paixão pela vida.

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    No filme não é possível seguir, passo a passo, a elaboração desta bebida sublime, mas como costumo prepará-la em momentos de um libertador recolhimento comigo mesma, ou naqueles em que me entrego por inteiro a deliciosas companhias, deixo aqui, para você, a minha receita.

    No entanto, antes de fechar com chave de ouro (ou de chocolate), em meio a dezenas de obras cinematográficas que, de alguma forma, têm a gastronomia em seu enredo, preciso citar como imperdíveis (correndo o risco de faltar com alguns) Vatel, O Jantar, A Grande Noite, Simplesmente Marta, Ratattouile, Toast, Julie & Julia, Tomates Verdes Fritos, O Segredo do Grão, Tampopo, Volver

    Eu não disse que a lista é interminável?

    Mas vou parar por aqui, para que você possa ir para a cozinha, juntar 1l de leite com 400gr de chocolate em pó (costumo usar aquela caixinha que tem dois frades), um pau de canela, casca de uma laranja (cuidado para não ir além da camada branca), um tiquinho (tiquinho mesmo) de noz-moscada ralada, e a ponta de uma pimenta malagueta (do tamanho de uma cabeça de fósforo). Leve ao fogo até ferver, e depois, em fogo baixo, vá mexendo até que adquira uma consistência cremosa. (A receita dá para 4 pessoas).

    Agora entregue-se, de corpo e alma, à aveludada textura do chocolate, visitada, aqui e ali, pelo perfumado e instigante nuance de cada um dos outros complementos!

    Depois… depois passeie por todos estes filmes e infiltre em sua cozinhas!

    Texto de autoria de Cristina Ribeiro.

  • Crítica | As Aventuras de Pi

    Crítica | As Aventuras de Pi

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    Ang Lee é um cineasta de obra variada (O Tigre e o Dragão, Razão e Sensibilidade e Hulk passaram por ele), mas a adaptação de As Aventuras de Pi parecia ter os elementos em que ele funciona melhor: um roteiro com elementos de estranheza e surrealismo e a possibilidade de ser visualmente impressionante.

    O filme é uma adaptação do romance de Yann Martel e conta a história de Pi Patel, um garoto indiano que está migrando para o Canadá com sua família quando o navio afunda e ele se vê preso em um bote salva-vidas com um tigre de bengala. Durante a maior parte do tempo, tudo que o espectador vê é Pi, o tigre e o mar, e é um grande mérito de Lee que, embora seja lento, o filme não se torne excessivamente arrastado.

    Ang Lee consegue passar com relativa eficiência a angústia e a claustrofobia do personagem, e é essa tensão o que segura em parte a quase uma hora e meia de filme em que nada efetivamente acontece. Além disso, o tigre é construído com eficiência e, no fim, se torna um personagem mais carismático do que o próprio Pi. A montagem e os ângulos de câmera são todos pensados para aumentar a tensão e a sensação de pequenez de Pi frente ao tigre, ao mar e às outras forças da natureza. No entanto, a impressão que se tem é que, para além do medo, existem emoções em Pi que o diretor deixou de lado, ou não conseguiu encontrar uma forma adequada de passá-las do livro para imagens.

    A história de Pi é anunciada a seu interlocutor canadense (e, consequentemente, ao espectador) como capaz de fazê-lo acreditar em Deus; porém, toda a jornada espiritual de Pi e tudo o que efetivamente deve ter se passado em sua mente é deixado de lado e o filme se foca apenas na tensão e no medo entre ele e o tigre. Além disso, algumas pontas do roteiro ficam soltas, como a relação entre Pi e a namorada que ele deixa na Índia.

    No final, Ang Lee pegou um livro considerado inadaptável e transformou-o em um filme acessível. O filme é de uma riqueza visual considerável e impressiona por não ser extremamente tedioso, apesar de não ter quase nenhuma ação. Mas toda a profundidade que a história anuncia é deixada de lado: Lee não trata das religiões de Pi, de sua solidão no mar e joga uma reflexão sobre o poder das narrativas e sua relação com Deus, mas isso também não é desenvolvido.

    As Aventuras de Pi não é de forma alguma um filme ruim: é um filme lindo, bem construído e com um final engenhoso, mas que indica um potencial muito maior que parece ter sido deixado de lado em favor de visual e tensão, atributos mais prováveis de garantir sucesso comercial ao filme.

    Texto de autoria de Isadora Sinay.