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  • Crítica | Tangerine

    Crítica | Tangerine

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    Tangerine é um filme tão à parte da normatização do cinema americano (e mundial) que não tem como passar despercebido. É uma alegoria por si só, nua e crua, filtrada pelas lentes de três iPhones 5s e camadas de cores quentes, evidenciando um universo tão sexual para quem o observa de fora, e frio para quem nele sobrevive. Não é fácil vencer a vida do jeito que as transgêneras quase conseguem – ensaiam melhor dizendo, entre muita correria e baldes de urina na peruca – aqui, o drama tem preço e custa caro. A vida na América é cada vez mais plural, na América e no mundo, e Tangerine é um manifesto, parada gay realista de 90 minutos sobre representação (a palavra da vez) e lugar de fala.

    Porque hoje, num contexto de Twitter, todos podem falar, mas aptos a ouvir nós nem sempre estamos, fala sério. Sabemos tudo, ou não é? Apenas alguém que conhece e entende um universo tão rico e marginalizado quanto dessas mulheres, mulheres que lutam para ser reconhecidas como tal, ou como não-binárias (orientação avessa à construção social de masculino-feminino, o que remete ao clássico de Godard), e principalmente para não terem sua honra destruída, sequer cogitaria em montar um retrato tão sincero e vibrante do quebra-cabeças que é o mundo LGBT.

    A partir de uma aventura bem simples, no calcanhar de duas prostitutas em Los Angeles, onde o sol não é para todos, onde Hollywood aloja uma parte ainda mais simples e invisível, digna do cinema drogado e marginal de um brasileiro feito Sganzerla ou Andrea Tonacci, podemos sentir o empoderamento de personagens à beira da sociedade, à beira de uma cidade de Angelinas e Brad Pitts na qual nunca ganharam o brilho que, só por continuarem na luta, já seriam dignas de tê-lo. Como diria Rocha: Um iPhone na mão e uma ideia na cabeça. Pena que no tempo de A Idade da Terra ainda não havia iPhone para expandir, ironicamente, o potencial de uma realidade.

    Mas se hoje, em 2016, temos 56 opções de gênero no Facebook, por que ainda precisamos de Tangerine? Pela mesma razão que os niggas americanos quiseram boicotar esse Oscar, e pelo mesmo motivo que David Bowie, em 1971, atualizou as definições de gênero – na cara da sociedade, e de salto alto. Nem tudo é cor, brilho e Beyoncé no mundo arco-íris, e no uso de metáforas intrínsecas a história (e narrativa), o diretor e roteirista Sean Baker traça um mosaico contemporâneo sobre as vísceras e o DNA que habitam e compõem os símbolos máximos das diferenças sociais: as travestis, os negros e os pobres. Os gomos da mexerica a ser descascada e assim remoída, com suas sementes analisadas e degustadas com caráter de emergência, de pressa, como se o mundo e os armários pegassem fogo e não houvesse tempo pra estereótipos. Nada é hilário, tampouco ordinário para nós, os cúmplices dos passos de quem destila as gírias e os palavrões dos guetos, na certeza dupla que 1) sempre haverá realidades dispostas a se apresentar a cada esquina, e que 2) sempre existirá lugar para todas no Cinema.

    Uma das melhores ambiguidades do filme diz respeito a própria identidade sexual dos personagens. Em nenhum momento especula-se se alguém, na história, já se submeteu a mudança de sexo ou não, ou seja, seriam elas transsexuais ou travestis? Nada disso importa, contudo, à medida que o filme especula as proezas e os altos e baixos de uma narrativa que abraça os detalhes e os tons mais claros e escuros de um universo curioso, que atrai e causa repulsa na maioria do povo. Como não se emocionar com o apelo de Alexandra para que sua parceira de guerra, Sin-Dee, a perdoe pelos erros do passado? Não há outro universo para os aliens da heteronormatividade vigente, e às vezes deveras indecente. Como diria a internet: o dia é da mulher, mas a noite é da travesti.

    As atrizes Mya Taylor e Kitana Rodriguez merecem os aplausos e a admiração que o público em 2015 só achou válido dar a Eddie Redmayne por sua Garota Dinamarquesa. Isso porque em Tangerine é nítido como a escolha certa de um elenco melhora o que já nasceu brilhando feito ouro, e gostoso feito fruta proibida, quando um elenco tem e ostenta (naturalmente) total propriedade de encarnar suas personas, mas não como as preparações de Daniel Day-Lewis e outros atores: vivem o personagem muito antes do filme sequer ser imaginado. Na pele.

    E não é para menos. Acredito 100% ser necessário negritude na veia para ser fiel com o público no papel de um escravo africano, por exemplo. Pois por melhor que seja Gael García Bernal em Má Educação, assistir a Mya Taylor rasgando na tela os dramas de alguém com seu perfil é, descartando amadores, o puro espetáculo de um espetáculo puro! Tangerine é isso: é carnaval sem fantasia, cara sem maquiagem, é mais um degrau para a visibilidade do leque sexual humano, é bicha preta com orgulho tanto de sua condição quanto de sua força e de seu caráter transformadores, mas, acima de tudo, não reforça, pelo contrário, humaniza a imagem caricatural de quem veste e é o símbolo máximo das liberdades sociais e de expressão individuais.

     

  • Crítica | Zoolander

    Crítica | Zoolander

    Zoolander 1Paródia escrachadíssima sobre o universo fashion dos super-modelos, Zoolander é um filme dirigido, estrelado  e produzido por Ben Stiller. Os primeiros minutos apresentam um complicado cenário político baseado na paranoia típica das histórias de espionagem, escondendo os personagens poderosos sob cenários sombrios e silhuetas que discutem o futuro da humanidade, que, por sua vez, jaz na futilidade.

    A figura ideal para se infiltrar na misteriosa questão deveria ser alguém poderoso, chamativo e igualmente ignorante, é neste ponto que entra a figura de Derek Zoolander (Stiller), que faz um modelo no auge de sua carreira, que basicamente, se prepara para uma nova pose, chamada de Magnum, tão importante que é guardada a sete chaves, longe da espreita dos tabloides. A surpresa ocorre pela perda do título de maior top model, sofrendo, a partir daí, uma intensa crise de identidade, sem caminhos para traçar. A dor da substituição é tão grande que o artista aparenta não ter mais um rumo para seguir, destacando-se o grande vazio existencial que já o consumia, mas que não era perceptível graças à fama infinita que o rodeava.

    Na tentativa de se reconstruir, Derek procura seu pai, Larry (John Voight), trabalhando junto com ele como minerador, apesar de sua incrível incapacidade de carregar peso ou de realizar qualquer trabalho que demande esforço manual. O choque ocorrido com ele faz ele se enxergar como um pária em ambos os ambientes familiares que conhece, o que o torna alvo fácil para propostas indecentes, vindas da figura que mais se aproxima de um vilão nesse jocoso e debochado cenário, com o estilista Mugatau, interpretado por um Will Ferrell que varia entre o exagero extremo canastrão e afetação ponderada, em uma caricatura de uma rainha má e megera dos clássicos contos de fada de Disney. A trama em si envolve um terrível caso político, com a possibilidade de assassinato de um diplomata estrangeiro.

    Toda a graça do filme está nas palhaçadas interpretadas por Derek – que sequer sabe quantas sílabas possui seu nome e sobrenome –  e seus rivais, Hansel (Owen Wilson), seu principal antagonista no mundo fashion, igualmente encantador, ao menos de acordo com os padrões imbecis e banais estabelecidos pelo roteiro de Stiller, Drake Sahter  e John Hamburg além, claro, da figura de Mugatu e seus sidekicks. As piadas funcionam basicamente por fazer troça com um ambiente onde a idolatria é o lugar comum, levando em conta piadas que remetem a um nível de pensamento bastante baixo, desconstruindo o objeto de adulação de uma indústria que lucra bilhões de unidades monetárias, usando de gags cômicas das mais bobas para mostrar um argumento inteligente, apesar da fala simplória.

    A cena de disputa entre Zoolander e Hansel rivaliza com a lavagem cerebral que o protagonista sofre, para se tornar alvo fácil da estranha missão que lhe é incumbida. A quantidade de participações especiais é enorme, indo desde David Duchovny, como um ex-modelo de mão tão paranoico e ansioso quanto seu Fox Mulder, e David Bowie, que faz a si mesmo como juiz da disputa entre os dois astros. O papel mais significante entre as pessoas ditas normais é da repórter Matilda Jefferies (Christine Taylor), que evidentemente tem problemas com sua aparência, por ter sido uma pessoa obesa no passado e ter sofrido com bulimia.

    Zoolander consegue reunir pastiche com um estilo de vida extravagante e extremamente sexual, sem apelar para nudez ou para qualquer proximidade da dita “vulgaridade”. O filme desconstrói a superioridade normalmente atribuída aos mais belos homens do planeta, mostrando-os como bárbaros incapazes de tarefas simples, como ligar um computador desktop. Stiller consegue elevar um personagem, que não tinha ido além de dois curtas bastante tímidos, ao patamar de herói de um filme que trata com esperteza um mundo repleto de conceitos e certezas superficiais, através de uma mensagem simples e não panfletária, mesmo com toda a acidez eufemística presente no argumento.

  • Crítica | A Um Passo do Estrelato

    Crítica | A Um Passo do Estrelato

    A Um Passo do Estrelato

    A Um Passo do Estrelato  é um documentário musical que reconstrói o manifesto de uma época em que a publicidade ainda era fiel ao artista. Em um fluxo histórico linear, a auto avaliação do período que registra é feita com alma e aura investigativa, com cada relato na linha de frente, um por um à mercê de distintas intensidades.

    O filme é uma refinada unidade do seu gênero no cinema, realçado por elementos como a emoção ao expressar a luz de um espírito musical -“Ele suava feito porco e cantava feito anjo!” -, os fatos de bastidores ainda inéditos, como a clássica interpretação feminina em Gimme Shelter dos Rolling Stones, as lições de “como impressionar de David Bowie a Stevie Wonder, passando por Ray Charles e Michael Jackson“, com o relato de quem conseguiu tal pretensão de principiante, as gravações audiovisuais e fotográficas independentes, e ainda o desafio de realizar uma retrospectiva à altura de todo o montante a se registrar do cenário eufônico americano, nos orgásticos anos das décadas de 50 à 80.

    O contexto da indústria musical pouco mudou desde então, e continua ainda influenciada por quem proporciona o céu para as estrelas brilharem com suas vozes, tentando sobreviver junto, ou contra, o brilho das outras. O documentário, em uma viagem muito bem editada de duas épocas seculares, prova que as armas para se lutar por um lugar na constelação de talentos invencíveis continuam as mesmas. Os tempos trocaram de roupa, mas não de essência, como é possível notar nos closes das divas de outrora e de hoje, em cenas valiosíssimas.

    Após a sessão do documentário, Dream Girls (2006) torna-se um mero ensaio à realidade do pulsante show business, senão uma espécie de subversão à verdade das coisas, deturpando o bom combate de mulheres que, muitas vezes, não tiveram a chance de ter uma vida digna de uma estrela de cinema, muito menos um final feliz como ponto de virada, pois quem não sabe que estrelas não morrem? Pelo menos não antes de explodirem em fragmentos audíveis chamados de discos, sacrifícios, suor e, com um pouco de sorte e dedicação, serem lembradas no mural atemporal do sucesso.

    Há uma sequência que merece ser avaliada em solo aqui: uma revoada de pássaros num céu de começo de manhã. No ar, alguma melodia leve e pouco importante, diante do simbolismo da imagem em movimento, durante instantes que poderiam ser mais largos, inclusive. Metáfora redundante em todo o documentário. Aves, uma revoada delas, disputando, num uníssono de liberdade, o mesmo espaço. Espaço em que nasceram para estar e fazer o que nasceram para performar. Algumas conseguem o voo, e para tanto, continuam a batalhar para honrar seu dom. Outras, do ninho, veem o confronto com o chão, a escuridão. Essa é a vida, essa é a ideia, seja no palco ou na plateia.