Resenha | Big Sur – Jack Kerouac
“Todos nós já lemos Freud o suficiente para entender o que está acontecendo aqui.”
Deve ser perturbador ser a voz de um movimento artístico. Assim, incumbido a você, reside o peso de todo um ápice artístico musical, cinemático, ou no caso, literário; algo que varia de tempos em tempos, cujo o frescor que uma geração traz depende e pode ser resumido de você, da sua nova visão, dos seus novos temperos, deliciosamente originais e até mesmo ousados, caso um seja confundido com o outro. Jack Kerouac foi a geração beat, sendo o representante mais justo e principal de uma prosa 100% espontânea e real feito a bebida que o(s) alucinava, respeitando somente o fluxo de consciência dos seus autores e autoras inevitavelmente controversos, na época.
Kerouac foi um dos maiores, senão o grande estandarte americano de um tempo de liberdade a pavimentar, ainda, a vinda messiânica das canções de Bob Dylan e os filmes da Nova Hollywood, tal Sem Destino, M.A.S.H., Caminhos Perigosos e, é claro, O Poderoso Chefão. Foram os tempos de expansão cultural desenfreada e sem culpa cujos ‘diamantes telepáticos’ de Jack, assim como são definidos por Allen Ginsberg os seus livros e ensaios, ainda no começo da edição brasileira da L&PM POCKET, com tradução sublime de Guilherme da Silva Braga, os auxiliaram a ser uma realidade palpável e com um cheiro inebriante de “quero pertencer a ela, também”.
Narrado com exclusividade por Jack Duluoz, alter-ego do autor, Big Sur é uma ode àquele fluxo de consciência livre, leve e solto que guiou a geração beat americana dos anos 50, orgulhosamente escrachada; expoente dos liberais das décadas a seguir. Aos desavisados, temos aqui a perfeita condição de reclusão social que leva um escritor a se aprofundar em sua existência, seus vícios, levando-o ao caos físico e psicológico em contato com a realidade de uma simples cabana à beira-mar, num lugar retirado e homônimo ao livro, onde logo no quarto dia Jack já está de saco cheio e mesmo assim algo lhe faz fincar raízes sob a missão de escrever o incrível poema ‘Mar’, um triunfo deixado no final do livro após toda a danação e a confusão emocional descrita como um caminho que Jack (o alter-ego) passa na elaboração do seu objetivo para, enfim, poder atingi-lo.
E para o nosso deleite. Deixa-se claro, também, como os livros de Kerouac jamais foram ou sequer poderiam ser fadados as traças, ao confinamento de páginas fechadas, em estantes ocas,num fim de sessão bibliotecária – muito menos o nosso Big Sur, em absoluto. Na verdade, suas histórias e principalmente a abordagem a essas histórias, contos mundanos rompendo a barreira do tempo e do espaço através de uma narrativa impecável e entorpecida por muita bebida e reflexões da madrugada, constituem um tempo próprio e uma mitologia própria cadenciadas por personagens reais, tidos aqui por outros nomes, em outras praças e situações. Todos eles tiveram vez na eternidade. Nem Ernest Hemingway e Marcel Proust escapam de seus devaneios kerouacianos.
Nostálgico, constante, grande e sozinho em si mesmo, o cara afirma que ‘não há tormenta tão quieta e tão terrível quanto a tormenta interior’, fato expresso no poema já mencionado, em certo momento, ao evidenciar não só a urgência óbvia na qual o livro foi gestado a duras penas, mas o controle de Jack (o autor) com as peças únicas que com um lápis e papel concebia ao ar livre; essa obra, no caso, sob o barulho das ondas e muita conversa jogada fora, noite adentro. Porque Kerouac era pássaro da noite, da estrada, do mundo, pertencia a ele, e o mundo assim faz o favor magnânimo de não esquecê-lo, jamais.
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