Crítica | Rio Ano Zero
O filme da francesa Aude Chevalier-Beaumel começa com uma narração em inglês. O narrador, em seu carro, observa a Cidade Maravilhosa e diz querer estar próximo da ação e do povo, e não do poder, porque esta interação é bonita, a melhor coisa que poderia ocorrer com a cidade. Rio Ano Zero varia entre os momentos em que a violência do Rio de Janeiro é exposta – seja pelas armas que os seguranças precisam carregar em seu ofício, seja pelos morros, paramentados com toda sorte de arsenal pesado – como uma das alternativas políticas, diferente demais das figuras de poder presentes na tradição governamental da antiga capital do país.
Marcelo Freixo não é afagado pela imprensa. Logo no início, é filmado em um estúdio da CBN tendo de responder se evadiria o país novamente, uma vez que estava sendo ameaçado de morte por milicianos, cujo cerco havia se apertado graças a CPI das Milícias. Os funcionários que estavam armados serviam a si mesmos, numa exposição clara de como funciona a rotina do Rio de Janeiro e como age o poder paralelo quando encontra um desafeto.
A intimidade do professor de história, e intenso combatente deputado estadual, é mostrada não só em seu discurso extenso contra a corrupção, mas escrutinada até em seu cotidiano, em sua casa, com a câmera passeando entre sala e escritórios, capturando cenas onde ele está inclusive trajando pijamas. O foco é obviamente as denúncias do candidato do PSOL (Partido Socialismo e Liberdade) contra a criminalidade crescente no Estado do Rio, provocada por organizações de cunho mafioso, que vivem tranquilamente, habitando a mesma cidade que abrigaria a Copa do Mundo, Olimpíadas e a Jornada Mundial da Juventude. A conivência do prefeito e candidato à reeleição da eleição de 2012, Eduardo Paes, com uma chancela de vinte partidos, visava evitar o segundo turno e qualquer debate direto.
A diferença de tempo disponibilizado no horário eleitoral era de pouco mais de um minuto para Marcelo, enquanto Paes dispunha de 16, em virtude do número de parlamentares na câmara municipal. As acusações ao mandatário da cidade prosseguem fortes e cada vez mais intensas, assim como a intensa corrida eleitoral.
Freixo usa sua boa fala para destacar alguns pontos “a favor” da milícia, lembrando a boa aceitação desta com a opinião pública – a exemplo das falas de políticos antigos, como Cesar Maia, que afirmavam que esse sistema era a autodefesa da sociedade. Até a população geral a abraçava, graças ao modus operandi típico das organizações mafiosas pelo mundo, que apresentam um braço assistencialista e outro de terror, equilibrando caos e uma falsa atenção aos necessitados, em práticas puramente demagógicas.
Toda a mudança na arquitetura da cidade é registrada pelas lentes, com a poluição visual e física causada pelos estandartes e santinhos, especialmente nas áreas periféricas da Zona Norte e Oeste. Como é destacado pelo próprio biografado, há um monopólio de informação, já que só há um jornalzão carioca, O Globo, do grupo de Roberto Marinho, que obviamente privilegia uma fatia de candidatos que estão na posição à direita. É neste ponto que mora o maior problema do filme, o qual repete um dos inconvenientes da esquerda, que secularmente fala a favor dos pobres e incautos, mas que não consegue ser plenamente entendida por estes, já que a sua fala é pomposa, não nem um pouco popular, emulando o traquejo de Freixo.
As formas de comunicação utilizadas pela campanha do PSOL foram, em sua maioria, via internet, já que a massa começou a consumir o conteúdo digital. A tentativa do partido em ser pioneiro se deu não só em método político, mas também em divulgação, por meio de colaboração não comissionada. Se a ingenuidade prevalece em grande parte dos colaboradores de Marcelo, há uma estreita vontade de mudança, uma não consensual mudança, uma mudança que não prevê apoio daqueles que torturaram a máquina pública e o seu povo, que opta por revidar as injustiças que sofre há muito tempo, não com ódio, mas sim com uma tenaz esperança, que ganha corpo com a candidatura ética do deputado.
A câmera passeia por vias laterais, mostra um lado de Freixo um pouco diferente do exibido na campanha, mas que guarda muito mais semelhanças entre rotina e discurso do que a maior parte dos políticos brasileiros, já que as causas e bandeiras populares presentes na fala do então candidato se refletem na sua privacidade, mesmo na banalidade do seu dia a dia.
A sensação após o resultado final do primeiro turno, que sinalizava a não realização de um segundo certame, não foi abraçada pelo combatente e por seus partidários como um revés, já que a mudança da postura do povo parecia algo maior, assim como a postura da parcela mais jovem da população. As limitações e precariedades da campanha ajudaram a unir os que participaram da campanha. Abraçados pelo povo, por aqueles que se sentiram parte daquela jornada, não só por votarem naquela legenda, mas também por espalharem a mensagem de que nenhum adversário deveria ser tão respeitado e que não pudesse ser derrotado. A direção de Chevalier-Beaumel, apesar de fugir bastante do escopo fundamental ao escolher um viés um bocado utópico do pensar político, ao menos prima por um belo sentimento, focado na transparência do postulante revolucionário, que, nas últimas eleições, foi o mais votado de seu segmento no Rio de Janeiro, e que parece crescer em popularidade para uma possível candidatura à prefeitura da cidade em 2016.