Review | Good Omens
Adaptação da literatura de Neil Gaiman e Terry Pratchett, conhecida como Belas Maldições, Good Omens é uma minissérie em 6 episódios com um caráter satírico, que mostra a historia de dois seres divinos que se vêem obrigados a voltar a conviver juntos graças a chegada do apocalipse. A produção original da Amazon teve muitos recursos gastos em divulgação, e aposta nos seus dois atores principais para fazer sucesso, em Michael Sheen, que faz o anjo Arizaphale, e David Tennant que interpreta o demônio Crowley, em compensação, não há tantos gastos com efeitos de pós produção e afins, o foco é no texto engraçado e nas atuações do elenco estrelado.
Primeiro há de se notar que a série não se leva a sério, sua estética se assemelha ao que se faz na TV britânica, como é visto em Doctor Who, com efeitos especiais bem baratos, parecidos com os vistos nas produções do canal B Syfy. O programa não é exatamente trash, mas o cunho cômico ajuda a normalizar o fato de claramente não ter muito investimento em efeitos em CGI. A trilha sonora, repleta de sucessos do rock inglês – em especial Queen – também facilita a adaptação de olhos e ouvidos do espectador, além do que, ajuda a fortalecer o senso de humor que lembra bastante Dogma e outras comédias nonsense.
O começo é um pouco truncado, mas melhora bastante seu ritmo no segundo episódio. Jon Hamm faz Gabriel, um anjo que não sabe parecer um humano normal, sendo nada sutil ao tentar disfarçar sua condição. Para emular normalidade, ele diz em um lugar publico que seu objetivo é comprar pornografia, em uma mostra do quanto o humor, apesar de bem trabalhado pode se fundamentar em idiotice implícita.
Outro ponto importante do caráter do seriado, é que ele adora debochar de seus espectadores, fazendo piadas com astrologia, sempre mostrando os personagens divinos acima dessas crenças mundanas, sem deixar de discutir clichês dogmáticos em especial as religiões judaico-cristãs, a começar por ter Deus dublado por Frances McDormand, uma figura feminina que apesar de forte, desafia a mentalidade misógina que é bem presente nos círculos internos das igrejas. A rivalidade do Diabo e do Divino faz criar a humanidade, e através da biografia de Adão e Eva, Crawley e Arizaphale interferem no Status Quo, de maneira muito pontual, aliás, com cenas de um chroma key terrível com a cobra do Jardim do Éden. Ambos personagens acham que suas ações não interferirão no universo, mas obviamente mudam toda a configuração das criaturas terrenas, fazendo o homem pecar, descobrir o fogo e as armas. O desespero deles aumenta quando percebem que em suas ações conjuntas, podem ter condenado o universo, e se pensa numa possibilidade de terceira via, mas se eles tem contato com os homens, obvio que eles mudam seus passos. É incrível como essa parte da trama conversa bem com a mentalidade de primeiro contato presente em séries de ficção científica como Jornada nas Estrelas: Série Clássica.
O drama vai aumentando seu grau com o decorrer dos outros episódio. A estética da série também melhora, cada cenário e núcleo diferente tem sua própria identidade visual e seu conjunto de personagens. Da parte dos anjos caídos, há todo uma aura pós apocalíptica que faz crescer quando o Armageddon se aproxima. Para a surpresa do grande público – não para quem conhece a obra original – há um núcleo infantil onde reside o possível/futuro Anti-Cristo, e esse personagem, feito por Sam Taylor Buck é bem humanizado, e faz lembrar muito eventos da cultura pop, como Os Goonies. Os anjos que não são os protagonistas seguem numa aura típica dos seriados da HBO, com glamour, fotografia que faz a luz prevalecer e alguns luxos.
A postura galhofeira de Crawley contrasta bem demais com a postura reta e conservadora de Arizaphale, e a maioria dos momentos dramáticos só funciona por esse choque cultural. As discussões sobre os anjos desencarnarem, como parte do processo apocalíptico abre possibilidades para comentar até sobre mitos gregos, como Prometheus, ligando isso ao Hiper Mito que Joseph Campbell sempre defendeu, em uma versão quase ecumênica da origem e fim da humanidade. A brincadeira com a distância idealista entre um anjo e um demônio é muito bem exposta, mostrando que a percepção do mundo que os dois personagens não é tão diferente, pois ambos são alienados em comparação ao homem, que vive e sofre seus flagelos diariamente.
A rebeldia de Sam é voltado para um lado não maniqueísta, é incrível a subversão da religiosidade comum, e o modo irônico que os roteiros empregam nesses seis capítulos. Mesmo a desculpa de que a confusão que ocorre no final, que trata o fim do mundo”cancelado” como um devaneio coletivo tão grosseiro que faz o povo esquecer automaticamente o que acabou de acontecer é sensacional. Incrivelmente a historia termina ao mesmo tempo como mantenedora do status quo e ousada, pervertendo a ideia cristã de como o mundo acabaria.
Há muita inteligência na tradução de Good Omens para um programa de TV, mostrando os anjos caídos ou não como personagens falhos, atrapalhados, e que tendo um poder imenso, podem interferir de maneira arbitrária na vivência comum dos homens, mesmo em pequenos atos, mudando toda a situação dos seres vivos comuns, mostrando o quão frágil pode ser a obra-prima de Deus, mesmo os formados a sua imagem e semelhança. A conclusão filosófica sobre o homem e o divino é muito sagaz e inteligente, e faz sentido na maior parte dos minutos em tela.
https://www.youtube.com/watch?v=hUJoR4vlIIs
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