Crítica | Pra Frente, Brasil
Focando o ufanismo e discutindo a máxima de “Ninguém segura esse país”, Roberto Farias faz uma obra que tem em seu começo um clima muito semelhante ao das pornochanchadas. O intuito é ludibriar o espectador, fazendo-o acreditar estar vendo mais um espécime comum do cinema brasileiro dos anos oitenta e em poucos momentos de tela já é apresentada uma reviravolta. Misturando o ideal do Dream Team da seleção, destacando “as feras do Saldanha” — injustamente retirado do cargo antes da Copa de 70. Já na introdução é desenhado o mapa político e social de Pra Frente, Brasil, sem se valer de esterótipos bobos, de militares caricatos e maniqueístas e apresentando os oposicionistas como pessoas comuns, agindo cautelosa e disfarçadamente.
O ano de lançamento da fita era 1982, enquanto os militares ainda estavam no poder, apesar de já não exercerem “a mão de ferro” com tanta veemência. A história começa mostrando Jofre Godoi, interpretado por Reginaldo Farias, um pacato servidor público que é confundido com um militante pelos militares, por estar no lugar errado e na hora errada. Logo que ele é capturado, é levado a um interrogatório. Sem circunlóquios, é submetido a algumas provações físicas e palavras de humilhação, envolvendo até a figura de sua esposa. O desaparecimento de Jofre faz com que a polícia entre em contato com o irmão dele, Miguel (Antonio Fagundes) e a esposa Marta (Natália do Valle), numa alusão a um defeito das autoridades, levantando a possibilidade ou de fingimento e sonegação de informação por parte da polícia ou de completa falta de estrutura e comunicação entre os órgãos.
Jofre é submetido à violência, mas não sofre as surras calado; sua reação faz com que os torturadores ajam com mais dureza ainda. As mortes envolvidas no caso não são sequer noticiadas nos jornais. A personagem Marta serve de orelha para o discurso de que toda a imprensa é censurada. Do núcleo principal, somente Miguel tem clarividência sobre o panorama da nação: sua fala “Isso aqui não é a Suíça” evidencia o descaso com que o cidadão comum é tratado. Mesmo dentro do oikos de Miguel e Jofre, há quem ignore por completo a ausência de liberdade.
A ansiedade e a preocupação fazem Marta ir às vias de fato, investigando o caso do desaparecimento de seu marido, inclusive utilizando-se de uma identidade falsa. Ela não vai presa por um triz. Paralelamente, Jofre é mostrado em seu cárcere, sem conseguir responder convenientemente aos seus agressores por tipificar-se categoricamente como um apolítico e de ideologia neutra. O típico sujeito normal que valoriza a família, a moral e os bons costumes e que, de um momento para o outro, tem todos os seus direitos retirados, como se não fizesse diferença alguma a sua postura anterior. Sua conclusão é de que aquele tratamento desumano é imerecido para todos os brasileiros.
Mariana (da ainda muitíssimo bela Elizabeth Savalla), a amada de Miguel, engaja-se na militância de protesto. Num dos encontros com um dos “companheiros”, o personagem Zé Roberto é mostrado em uma iluminação diferente, com uma sombra sobre o rosto, emulando uma dualidade justificada pelo pretenso comportamento subversivo no âmbito político.
Episódios comuns à historiografia são mostradas ou mencionadas no roteiro de Roberto Farias, Reginaldo Faria e de Paulo Mendonça, como, por exemplo, os casos dos “dedos-duros”; o controle das comunicações por meio de telefones grampeados; blitz organizadas em inúmeras estradas públicas. O posicionamento neutro não garantia aos civis a segurança de não serem reprimidos, graças à paranoia destes, pelo contrário, fazia com que fossem malvistos pelos membros da oposição que enxergavam-nos como acomodados, conformados com a situação calamitosa do Brasil. Os membros da repressão invadem os domicílios sem qualquer menção à permissividade, humilhando e maltratando mesmo os colaboradores do Regime. Até alguns dos homens fardados contestam a violência das ações, claro, de forma moderada, para que não sejam confundidos com os vermelhos.
Miguel cansa de esperar a polícia e se posiciona contra os milicos, ameaçando o empresário Geraldo (Paulo Porto) de morte. Junto a ele, Miguel vai até a uma sessão de tortura, assistida por outros homens importantes, tornando óbvia a participação dos cidadãos influentes e comuns. Sem o apoio destes, a ditadura jamais seria legitimada.
O desfecho narrativo ainda guarda algumas surpresas, como um embate entre um grupo de controle dos subversivos, que cerca Miguel e os seus dentro de uma casa, pondo em risco até a vida dos filhos de Jofre. O tiroteio generalizado deixa muitos mortos e é bem otimista se visto pelo lado dos protagonistas, até que ocorre a perseguição de carros na frustrada tentativa de fuga.
O filme ficou somente um dia em cartaz: o regime censurou o copião logo que veio a público, por achar que o roteiro de Roberto Farias tivesse sido inspirado em situações reais, ligadas à Operação Bandeirantes, algo que realmente ocorreu.
O momento da tragédia para Miguel é mostrada paralelamente à vitória da seleção de Zagallo no México, transitando entre o esporte inebriante, como os efeitos do ópio, e a dura realidade das pessoas comuns. Ao final, pouco antes do início dos créditos, há uma citação em texto, com a imagem da torcida congelada e os dizeres: “Este é um filme de ficção”. Traz uma dualidade ao tema, pondo em xeque a postura do governo e, claro, o papel alienante que o esporte tão idolatrado exercia na mentalidade do povo. Para a execução da fita, foi necessária muita coragem por parte de seus idealizadores.