Review | American Gods – 1ª Temporada
Em parceria com o canal Starz, Bryan Fuller e Michael Green começaram a adaptar a obra de Neil Gaiman, Deuses Americanos, nesta primeira temporada de American Gods, os showrunners dão vazão a uma introdução desse mundo fantástico onde deuses mitológicos antigos tem de lidar com novas divindades e entes de adoração do homem moderno. Este é apenas o tomo um da história, e esse aspecto introdutório pode desagradar o público não acostumado a literatura e narrativa de Gaiman, e a princípio terá em torno de três temporadas para adaptar o livro em si – uma continuação está sendo terminada neste momento, pelas mão do próprio autor.
O começo mostra a emigração da Europa para o Novo Mundo, primeiro no passado e depois na atualidade, tendo ambas encarnações uma proximidade grande com o barbarismo, tanto nos invasores piratas quando nas figuras de Wednesday (Ian McShane) e Shadow Moon (Ricky Wittle). Após ser liberto da prisão, Shadow se vê obrigado a fazer uma viagem de avião, mesmo se sentindo desconfortável e decide fazer o restante de trajeto de carro, movido pelo receio de voar depois de um pouso forçado por mal tempo. Em seu caminho rumo ao enterro de sua falecida esposa, Laura (Emily Browning) ele é novamente abordado por Wednesday, que lhe oferece um trabalho estranho, e o mesmo só aceita depois de um embate com Mad Sweeney (Pablo Schreiber), um sujeito estranho, que representa os leprechauns da cultura irlandesa.
A dicotomia dos primeiros momentos está entre na recém adquirida liberdade de Shadow e a invasão que ocorre em solo americano. Apesar de as atmosferas serem completamente diferentes, o rumo das duas trajetórias tem em comum alguns pontos, seja na primeira, mais mundana com a perda de entes queridos do protagonista- ou a quase conclusão dessa perda, uma vez que se trata também da condição de mortos vivos- ou a conclusão mais universal com o conflito entre os divinos. Apesar de ter um norte diferente para ambas situações cada uma dessas serve como o início para uma outra jornada, que por sua vez, ajuda a igualar gradativamente mortais e divindades no mesmo jogo, tendo até um resgate dessas questões mais pessoais, que obviamente são elevadas ao patamar de importância do que é levantado por Wednesday.
O primeiro contato de Shadow e Mad Sweeney é visceral e imaturo com provocações e brigas irracionais e baseadas em clichês bobos, que redundam em questões básicas de orgulho e soberba, questões essas muito comuns no cotidiano do homem adulto comum, expondo ali a diferença básica entre o sujeito ordinário e o divino, ainda que um tenha sido baseado no outro e criado a imagem e semelhança desses. Essa mistura enriquece demais a trama, ajudando até em outro aspecto do programa, como a questão de vida e morte, tratadas também como entes semelhantes, seja pelas divindades de Anubis (Chris Obi), deus egípcio do pós-morte ou pela nova trajetória da undead Laura Moon. O entrave entre os dois é um dos pontos altos de Git Gone, quarto episódio desse ano inicial.
A postura de Shadow é blasé, como um elemento fora daquele novo mundo, agindo como um personagem orelha mas que dá de ombros para todo aquele novo mundo que se apresenta, resignado pelo conjunto de sensações que começou a sentir ainda em cárcere. Isso evidencia um dos pontos altos da série, a despeito até dos vários problemas de roteiro, as atuações do elenco em geral vão muito boas, não só de Whittle, mas também Browning, que desenvolve um papel adulto e nada maniqueísta, utilizando a dramaticidade da atriz para muito além de sua zona de conforto, enquanto seu esposo consegue reunir em si tanto as características de um neófito recém chegado a um novo cenário e um guerreiro predestinado e astucioso, que ainda não tem total consciência disso.
O texto que Fuller comanda faz lembrar muito os defeitos de outro produto seu, Hannibal, no sentido de postergar o confronto, deixando as partes dramáticas interessantes da literatura original sempre para depois, ainda que essa situação seja menos gritante neste American Gods. De positivo, há o acréscimo da figura mitológica e repaginada de Hefesto/Vulcano, deus greco-romano responsável pelas armas olímpicas, mas que tem um final estranho em comparação com o lema do programa – deuses são reais se acredita neles – mas que ainda assim é apresentado sob uma égide madura e sucinta. Os episódios posteriores já se dedicam mais a trabalhar o background de algumas pessoas, ainda que soem repetitivos às vezes. O interesse do público geral é retomado perto do final, quando se discute um banquete a Odin.
Os 59 minutos de Come to Jesus, deveria amarrar algumas pontas soltas, além de referenciar diretamente ao tal plot da temporada, que envolve não só Wednesday e seres antigos, mas também os novatos, em especial a figura da mídia, executada brilhantemente por Gillian Anderson – que faz papéis como os de I Love Lucy, Ziggy Stardust, Marilyn Monroe e Judy Garland – da tecnologia, executado por Bruce Langley, além do misterioso Mr. World (Crispin Glover) que aparece pouco, ainda que seu papel seja enorme na trama principal.
Nesse ínterim, algumas encarnações de divindades aparecem, entre elas, múltiplas de Jesus Cristo, ser este já referenciado anteriormente em uma sequência com os mexicanos atravessando a fronteira com o país de Donald Trump, em busca de uma vida melhor, recebidos é claro por calorosos assassinos que chacinam os latinos. Esse cuidado em retratar várias facetas da mesma figura de adulação serve de comentário irônico a tantas denominações cristãs e pseudo cristãs, que reclamam para si uma versão própria das escrituras canônicas da Bíblia Sagrada, pervertendo a letra fria ao seu bel prazer, para basicamente adequá-las aos seus preconceitos e ideias tacanhas, assim como também referencia aos crentes mais tolerantes e preocupados com o bem estar do próximo.
A identidade de Wednesday é secundária, ainda que haja alguma pompa ao se revelar isso – mesmo com todos os indícios anteriores, como o uso de corvos para sempre se referir a ele e a referência obvia do dia da semana que o batiza – e mais na união entre a Mídia, Tecnologia e Mr. World, além é claro de Bilquis (Yetide Badaki), personagem apresentada anteriormente, mas esquecida desde o segundo episódio. Essa união é curiosa, pois reúne veteranos e novatos no panteão em torno do mesmo adversário, que é Wednesday.
Há uma cena, no começo do season finale que resume bem o caráter desta temporada. A dupla de protagonista e mentor ficam a espera do discurso de Anansi (Orlando Jones) explicar a origem de alguns dos seres mágicos (em especial Quilbis) e a posição deles é confortável, sentados de roupão em cadeiras suntuosas, envoltos em uma atmosfera de luxo, desfrutando de uma história cheia de requintes, tanto em detalhes quanto em curvas dramáticas, mas sem um fim programado, sem um desfecho pensado. O espectador se sente exatamente neste ponto, apreciando um produto que lança mão de uma linguagem tipicamente cinematográfica, com uma fotografia e direção de arte belíssimas (mesmo com alguns efeitos defasados pelo claro orçamento típico da TV) com o rompimento de inúmeros paradigmas conservadores, mas ainda assim com uma trama que não resulta em conflitos maiores, deixando sempre o clima para um momento posterior. Hannibal não teve um fim programado, e terminou sem conclusões para a grande maioria de seus arcos, e a sensação de déjà vu se aproxima perigosamente do lançado em American Gods, que parece ser esticada exatamente para capturar a atenção dos maníacos por séries fantásticas, que tem muito a apreciar ainda, mas que certamente não tem um total agrado em sua experiência como público por faltar o fechamento desses enredos.
https://www.youtube.com/watch?v=tLZrqTxmdv0
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