Resenha | Os Homens que não Amavam as Mulheres – Stieg Larsson
Com milhões de cópias vendidas, a trilogia Millennium – cujos volumes seguintes são, respectivamente, A Menina que Brincava com Fogo e A Rainha do Castelo de ar – fez de Stieg Larsson conhecido fora do âmbito jornalístico, e também de sua terra natal, a Suécia. O autor, que estava à frente de uma revista na qual dispunha de espaço para abordar tanto a política de seu país – neste caso, escrevera sobre a extrema direita e organizações neofascistas – como os direitos humanos, não pôde, porém, acompanhar os crescentes números de vendas de seu livro. Em 2004, foi vítima de um infarto, e, apesar de pouco tempo depois de confirmada, sua morte seguiu envolta de teorias mirabolantes em razão dos alvos recorrentes dos artigos assinados pelo escritor.
Em Os Homens que não Amavam as Mulheres, o jornalista Mikael Blomkvist é redator e um dos sócios na revista Millennium, com grande credibilidade em seu meio profissional. No entanto, ao levar o poderoso financista Hans Erik Wennerström aos tribunais, acusando-o de corrupção e desvio de recursos, acaba por manchar sua reputação, uma vez que, mesmo dispondo de algumas provas e o depoimento de uma ‘‘fonte’’, estes se apresentaram insuficientes para a condenação do magnata. Blomkvist é julgado por difamação, sentenciado a cumprir pena, pagar uma alta quantia de perdas e danos, e é pressionado, ao lado de seus colegas de trabalho, pelo restante da imprensa. Além disso, a revista começa a perder anunciantes, influenciados pela onipotência de Wennerström em diversos ramos econômicos. Temendo que a Millennium feche as portas, Mikael decide se afastar de seu estimado projeto por certo tempo, até a situação acalmar. É neste cenário conturbado que o jornalista recebe uma estranha proposta de trabalho.
Lisbeth Salander é a moça que entrega as correspondências e faz o cafezinho para a Milton Security, a requisitada empresa de segurança onde trabalha. Pelo menos, é o que pensa seu novo (e asqueroso) tutor, o Dr. Bjurman. Sim, tutor. Lisbeth é considerada um perigo para si e para os outros. Após passar por diversas avaliações psiquiátricas desfavoráveis a ela, foi considerada incapaz de conduzir sua própria vida, designando alguém para fazê-lo. Até então, o Dr. Palmgren, com quem tinha uma relação amistosa – uma das poucas –, cumpria muito bem seu trabalho. Dava-lhe liberdade para que ela cuidasse de si da maneira que conviesse, porém estava presente, aconselhava e conversava com a garota quando a situação parecia complicada. Era um bom homem, mas havia ‘‘saído de cena’’ meses atrás, e o substituto não causara uma boa impressão. Pouco tempo depois de assumir a tutela da moça, o homem passou a chantageá-la, para que, em troca de ter seu próprio dinheiro liberado, ela o satisfizesse sexualmente. Em duas sequências da narrativa, ele impinge o abuso, e a segunda tentativa é tão violenta que faz o leitor questionar se tamanha brutalidade pode ser real. E a resposta acerta com a mesma violência e intensidade: sim. A jovem, machucada e humilhada, recupera-se fisicamente para, enfim, arquitetar uma maneira de se livrar do estorvo que era seu tutor. E, de preferência, fazê-lo sentir dor parecida, ou pior que a sua.
Lisbeth é a melhor em pesquisar informações sigilosas, montar perfis e relatórios detalhados sobre supostos alvos. Até Dragan, seu chefe, se rendeu à sua perícia, mesmo ela impondo, de certa forma, seu comportamento distante, por vezes hostil. Mas seus trabalhos, quando finalizados, são de uma qualidade espantosa. E não foi diferente quando um advogado já idoso precisou dos serviços da Milton Security para descobrir dados importantes sobre um determinado jornalista; os resultados das buscas pela rede que Lisbeth fizera, de fato, deixaram o velho impressionado, tanto quanto a constatação de que a mente brilhante por trás de grande feito residia numa jovem franzina, com piercings no rosto, tatuagens, que tinha em torno de vinte e quatro anos, mas aparentava ter, no máximo, quinze.
O desaparecimento de sua sobrinha, Harriet, fez com que Henrik Vanger permanecesse quatro décadas obcecado e obstinado a solucioná-lo. Temendo que a idade avançada não o permitisse testemunhar o fim do mistério, o industrial recorre ao jornalista decadente, esperando que este, refazendo sua investigação paralela, pudesse encontrar alguma pista sobre o destino da garota. Tendo também a cabeça de seu inimigo como pagamento, Mikael aceita (não, sem antes, relutar um bocado) o acordo com Henrik, que o apresenta como autor de sua biografia e de sua família, o clã Vanger. A presença do forasteiro desagrada muitos dos familiares, exceto Martin, irmão de Harriet e atual diretor executivo da empresa, e Cecilia, também sobrinha de Henrik, que se interessa por Mikael.
Tanto o jornalista quanto a jovem hacker estão empenhados em suas pesquisas. Conforme avança, Mikael descobre as nuances de caráter e personalidade de todos os envolvidos com o caso, direta ou indiretamente, e mergulha na história sórdida da família, que transpõe meras brigas por poder e dinheiro. Em igual intensidade, Lisbeth acompanha o caso de longe, destrinchando a vida de Blomkvist e as relações da corporação de Vanger no meio empresarial, e até mesmo uma ligação dela com Wennerström no passado. No entanto, durante uma conversa com o advogado do velho, Mikael fica sabendo da existência de Salander e seu relatório minucioso. Atônito por ela ter transcrito um texto que estava somente em seu computador (o que, a contragosto dela, provavelmente figurou como um erro, uma vez que o ‘alvo’ teve acesso ao dossiê), e ciente de que sua investigação tomava grandes proporções e seria interessante ter alguém para ajudá-lo, ele vai até sua casa, deixando-a surpresa, numa das passagens mais curiosas do livro. A partir daí, ambos expõem suas condições para o trabalho, e eles começam a investigar o caso juntos, formando uma dupla improvável, mas entrosada e ansiosa por desvendar o mistério.
De forma natural, tramas e personagens intercalam-se sem pressa alguma, nos dando não somente todas as informações e fatos relevantes, como também acontecimentos secundários que enriquecem e tornam a obra crível, tal qual um jornal, com suas diversas notícias, crônicas e colunas. Larsson imprime seu estilo informativo ao, por exemplo, mencionar em sua obra Olof Palme, primeiro-ministro sueco cuja morte, ocorrida em 1986, causara grande comoção no país, e também instigara o jornalista a investigar o caso paralelamente, uma vez que o autor do crime era desconhecido, e junto de outros fatos apresentados, nos dá uma noção do panorama político, e também econômico, daquele momento.
Retomando o tema central ao qual o livro se propõe, a violência contra a mulher, seja física ou psicológica, o escritor possibilita um debate necessário sobre o subjugo que o sexo feminino ainda sofre por desconhecidos, e até mesmo por parentes ou pessoas designadas a proteger e assistir, mas que utilizam de uma suposta superioridade para humilhar e infligir dor. Para criar o universo feminino de sua obra, Larsson provavelmente foi influenciado por um acontecimento passado – na juventude, o autor presenciou o estupro de uma garota, mas não pôde ajudá-la. A figura de Harriet, que Mikael e Lisbeth descobrem estar viva, aparece como mais um mártir da realidade atroz enfrentada pelo dito ‘‘sexo frágil’’. Sofrendo abusos tanto do irmão quanto do pai, a jovem havia decidido desaparecer, e agora, ao receber a visita do jornalista em sua propriedade, a viúva, que tinha um filho e havia mudado seu nome, sentiu novamente bater à sua porta o horror que vivenciara anos antes. O relato de sua penúria, por certo, faria até o mais hesitante da existência da objetificação sexual feminina rever seus conceitos.
O discurso de Stieg Larsson é franco, quase como se estivesse escrevendo um de seus artigos, não permitindo rodeios ou amenidades. As questões são lançadas sem comiseração ao leitor, que se vê impelido a pensar como o ser humano pode ser vil em nome da própria satisfação, não só sexual, como também em ver outra pessoa sofrer ao fazer algo contra sua vontade. Uma proposta de reflexão que o autor também exercia enquanto estava vivo, e ainda que somente através de suas narrativas, era uma situação que se empenhava em mudar.
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Texto de autoria de Carolina Esperança.