Crítica | Onde os Fracos Não Têm Vez
Onde os Fracos Não Têm Vez, ganhador de 4 Oscars e já cultuado filme dos irmãos Coen, ganhou tantas críticas e interpretações que soa difícil analisa-lo depois de tantos anos de seu lançamento. Mas sua qualidade é tão grande que, igual ocorre com todo grande filme, ele será sempre revisitado, pois enquanto a sociedade muda, e com ela as percepções das pessoas sobre ela e si próprios, novas camadas sobre ele vão sendo descobertas.
O filme é uma adaptação do livro de Cormac McCarthy, e se passa no ambiente já conhecido e preferido dos Coen, o sul dos EUA e suas características, que compõem um personagem a parte. Em 1980, com o crescimento do tráfico de drogas na fronteira com o México e também o crescimento da violência urbana e da degradação social e moral que o mundo começou a ver com maior frequência, Llewelyn Moss (Josh Brolin) encontra uma mala com dois milhões de dólares em meio a cadáveres de traficantes. Enquanto isso, Anton Chigurh (Javier Bardem) é colocado em seu encalço para tentar recuperar o dinheiro, deixando uma trilha de corpos e destruição pelo caminho. Seguindo essa trilha está o xerife quase aposentado Ed Tom Bell (Tommy Lee Jones), que cada vez mais fica surpreso e desiludido com a brutal realidade desse mundo novo, até então praticamente desconhecido para ele.
O sotaque sulista, característica marcante do cinema dos Coen, soa como música aos ouvidos, onde cada palavra é pronunciada de forma elegante, e as frases montadas com uma certa erudição e um toque leve de comédia garantem uma diversão a parte e um deleite ao espectador atento. Porém, ao contrário das outras produções como E aí meu irmão, cadê você?, dessa vez a música não ganha o destaque principal, e é substituída por sons diegéticos que contribuem para o suspense das cenas de perseguição entre os personagens.
O trio de personagens principais forma uma síntese da sociedade. Moss representa o selvagem do oeste clássico lutando pela sobrevivência. Chigurh representa a pura maldade e a psicopatia quase inexplicável que vemos ser cada vez mais comum, enquanto Ed Tom é o homem bom, civilizado, que luta para se manter equilibrado em meio ao turbilhão de eventos que está fora de seu controle, e que só resta a ele assistir a tudo impassível.
A composição de Bardem em seu personagem merece um destaque a parte, pois desde o início somos apresentados a ele de forma crua e direta, sem origem e sem explicação, pois ele não necessita disso. Sua expressão corporal, rosto imóvel e olhar frio conseguem gelar qualquer ser humano ao menor contato, e a cena onde ele, algemado, mata um policial, com um close em seu rosto transfigurado pelo seu ódio impessoal, já diz tudo o que precisamos saber sobre sua violência. Porém, como é lembrado várias vezes durante o filme, Chigurh também parece operar sob um código próprio, distorcido de acordo com sua distorcida visão da sociedade. Quando ele é incomodado por uma simples pergunta de um dono de posto de gasolina a ponto de jogar uma moeda para decidir a sua vida, conseguimos acompanhar a crescente tensão da cena ao mesmo tempo que incomodamente conseguimos entender parte do funcionamento doentio de sua lógica.
Enquanto avança o jogo de gato e rato entre Moss e Chigurh, fica cada vez mais claro que o primeiro não terá muitas chances contra o segundo. Tampouco conseguimos ter esperanças que Ed Tom conseguirá pegar algum dos dois. Dessa forma, o filme em seu ato final abdica de contar a história de perseguição e passa a refletir sobre o papel de cada um desses homens dentro da sociedade contra seus males, e mesmo a origem desses males. Ed Tom conversa com seu antigo parceiro, que sabiamente diz que nada daquilo é pessoal. Achar que o mundo está pior para nos punir por algo é pura vaidade. A complexidade das relações sociais que leva a isso vai além da cor de cabelo ou piercings, como outro personagem afirma, da forma que todos estamos habituados a ouvir.
O espetáculo visual proporcionado pelos Coen garante um realismo e uma solidez aos ambientes dos personagens. A sisudez de ambos nos incomoda, ao mesmo tempo em que nos deixa com os olhos grudados na tela, querendo saber mais sobre aquele mundo, cujas portas sabemos que deveriam permanecer fechadas. Onde os Fracos Não Têm Vez mergulha no profundo abismo que a humanidade possui, e retorna de lá com essa mensagem incômoda e complexa de entender. Cabe a nós tirarmos conclusões sobre esse abismo e o seu reflexo em cada um de nós, ao mesmo tempo em que nos digladiamos para manter a nossa humanidade frente a tamanha escuridão.
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Texto de autoria de Fábio Z. Candioto.