Bem-vindos a bordo. Flávio Vieira (@flaviopvieira), Filipe Pereira (@filipepereiral) e Rafael Moreira (@_rmc)recebem o ouvinte e podcaster Cliff Rodrigo Silva para comentar sobre a lista publicada no site sobre os melhores filmes lançados em 2017 no Brasil.
Duração: 111 min. Edição: Julio Assano Junior Trilha Sonora: Flávio Vieira
Arte do Banner: Bruno Gaspar
Na entrevista coletiva dada em São Paulo, semanas antes da estreia mundial de Logan, o ator e produtor Hugh Jackman comentou que o longa em concepção não deveria e não tinha a intenção de ser visto como um “filme de super heróis”, ou um “filme baseado em quadrinhos”, mas sim visto como um grande filme pura e simplesmente.
Como já dito aqui no Vortex, filme de super-herói não se reflete como um gênero. Não há regras que definem seus códigos e temas, como é com o drama e a ação. Seria então um gênero tautológico. Dessa forma seria algo oscilante mesmo, podendo sobreviver desde que mudasse rapidamente quais seus temas e abordagens. X-Men iniciou como uma sci-fi meio perdida no tempo, acrescentando as roupas de couro — vistas também em Matrix e Equilibrium, demonstrando a tendência de olhar para seres extraordinários de maneira mais sóbria. Na mesma coletiva Jackman lembrou-se que em X-Men o diretor Bryan Singer proibiu quadrinhos no set, pois gostaria que seu filme fosse uma adaptação relevante, algo além de uma cópia filmada. Existe um grande acerto nisso, como o Vortex já comentou no artigo sobre adaptações para o cinema. O filme não só não precisa, como não deve ser tão fiel assim ao seu material original. O termo-chave se chama “Especificidade do Meio”, que diz que cada mídia tem possibilidades de expressão particulares, e que assim funcionam a partir de fatores técnicos e artísticos.
Mas claro, há espaço para tudo. A grande fazedora de filmes de super heróis atualmente, Marvel Studios, mesmo entendeu isso, e deu a oportunidade de que seus filmes tivessem gêneros distintos entre si. A parte da discussão sobre a fórmula Marvel ser um tanto previsível, ao menos a sensação é de conseguir extrair algo diferente do mesmo template a partir dos signos que cada gênero traz consigo, e assim atribuir alguma cor aos seus filmes. O thriller de espionagem que foi Capitão América e o Soldado Invernal, o filme de assalto que ao menos em algum nível conseguiu sair de Homem-Formiga, a paródia de Homem de Ferro 3. Sendo assim, basicamente nenhum filme de super herói precisa parecer com um, não precisa ter o mesmo gosto, apenas precisa despertar sensações que ressoem no material original.
Não é, então, vergonha de ser colorido ou heroico. É apenas uma abordagem cabível em uma mídia que precisa interpretar aquele personagem de maneira um pouco mais robusta e condizente com a imagem que forma. Logan é, como disse o próprio diretor James Mangold, talvez o herói menos vaidoso que existe, sendo assim, se não for por motivos táticos (Como em X-Men 1, onde é insinuado que sua roupa alivia a dor da projeção das garras), ele seria o último personagem à vestir um uniforme amarelo e representar uma bandeira, chamar atenção pra si e servir como exemplo de algo. Seu heroísmo não heroico é aparentemente a melhor abordagem para o cinema, e a que vem se mostrando funcional até hoje, pois é condizente com o personagem.
Logan então reflete muito do personagem dos quadrinhos, sua essência a motivações. A falta de uma memória e de momentos felizes que com ela vinham, bem como incerteza sobre o que é e o quem é, fazem de Logan um personagem mais interessante do que Wolverine e sua brutalidade. Um personagem híbrido e multifacetado que precisa constantemente escolher sobre como irá agir, e controlar aquilo que sente que não deve entregar ao mundo. Neste ponto, o conceito de família é extremamente relevante para sua personalidade, tanto quando à rejeita quanto quando à aceita. A família é aquilo que lhe dá o eixo, motivações, perspectiva de futuro e de ação.
A masculinidade tóxica é aquela que estabelece critérios para traçar o que é o ser masculino, montando cercas e delimitando emoções e ensinando a nos comunicarmos através da violência, legitimando-a na forma de um comportamento destruidor de si e daqueles ao seu redor. Essa masculinidade ainda nos entrega a nossa outrofobia, que é a aversão a tudo aquilo que não é o nosso EU.
Lançado em 1963, no auge da luta pelos direitos civis nos Estados Unidos, X-Men é comumente associado à causa racial, devido o preconceito que sofriam ao serem segregados ao serem fisicamente “diferentes”, e às causas LGBT com suas intersecções, onde as referências são várias, como por exemplo, que a descoberta dos poderes mutantes ocorre geralmente na puberdade, além de diversas cenas onde filhos contam aos pais de maneira constrangida sua situação de mutante. Seus grandes líderes, Charles Xavier e Magneto são inspirações diretas de Martin Luther king Jr e Malcolm X. Sendo assim é sobre isso que se trata X-Men, sobre um tipo de poder renegando à tantos. O poder de ser aquilo e aquele que se é.
E assim é Logan, filme que encerra a trajetória de 17 anos de Hugh Jackman à frente da franquia que iniciou o cinema de super heróis e suas principais temáticas. Uma Sci-Fi quase passada em um mundo sem data, sem futuro, mas com passado. Passado em 2029, após os eventos de Dias de um Futuro Esquecido e sem esquecer que houve todo um passado (Apesar da linha do tempo do universo X-Men nos cinemas, que não agrada muito quem se importa com isso), Logan usa os sentimentos nutridos por aqueles personagens para lhes dar profundidade e relevância. É desta forma que se torna chocante ver aquele que outrora foi Wolverine cansado e abatido pela dor de ser o que é. Envenenado por si mesmo. Por isso o choro fácil na primeira cena de interação entre Logan e seu mentor, Charles Xavier, a mente mais poderosa do mundo. Por isso e por conta da atuação de Patrick Stewart, que se apossou do personagem com uma entrega e paixão a qual só é possível agradecer. Agradecer pelas lágrimas e afeição provocadas, pois é raro ter esses sentimentos tão generosos dentro de uma sala de cinema que esteja projetando um filme dentro da temática heroica.
Para amplificar essa relação, surge a X-23-Laura, a nova Arma-X, no papel de uma criança de olhos grandes e curiosos. Olhos de quem nunca viu o mundo, mas que o admira. Sua aparição e a presença de Charles Xavier foram Logan à deixar de atacar, mas cuidar. Não cuidar de maneira paternalista, mas tal qual uma leoa. “As garras a mais têm relação com o gênero dela. Leoas precisam caçar, mas também precisam defender” diz Xavier explicando sobre a biologia de Laura. Desta forma Logan se obriga a ser uma leoa e proteger, zelar pela vida e harmonia na medida de suas incapacidades emocionais.
“Para que os brutos também possam amar”
Charles assiste à uma cena de Os Brutos Também Amam, sobre a história de um pistoleiro espezinhado pelo seu passado, e que entende a violência como um caminho sem volta. Ela te persegue, seja a violência sofrida ou a violência gerada, sendo que nas duas situações o potencial transformador é o de piora do ser humano.
Enquanto historicamente as mulheres e leoas se puseram responsáveis pela vida, os homens de puseram responsáveis pela morte e pela dor. Nas religiões matriarcais a vida está acima das ideias de maldade. Nós homens somos responsáveis por não compreender a vida, numa estratégia paternalista que nos confunde, baseada na glamourização violência e da crucificação, mas que por ser assim, estabelece nossa incapacidade de lidar com sentimentos, de prover carinho, vida e mudanças. Essa incapacidade é aquela que provoca nossa inveja que tanto mata, tanto fere e tanto nos torna incapazes de compreender laços.
“O senhor da guerra não gosta de crianças”
É preciso pensar, é preciso se curar… Curar das marcas, se curar daquilo que te ensinaram a ser, se curar daquilo que te machuca. É preciso retirar tudo aquilo que te envenena e não permite que sejamos nós mesmos em nossa plenitude. Pessoas na plenitude de suas fraquezas e de sua humanidade, sendo aquilo que escolheram ser. Por que podemos escolher um caminho melhor.
Em determinado momento, porém, Logan diz para seu futuro: “Você não precisa ser aquilo que fizeram de você”. Não precisamos mesmo.
Com um final espetacular para uma história tão gigante, Logan banca a assinatura do personagem e do seu diretor, James Mangold (Johnny & June), com uma violência seca e pungente, com ossos quebrando e gerando em nós sensações de aflição e tormento. Aqui a violência não é um espetáculo para ser apreciado, mas para ser sentido e incômodo. A ideia é que não há beleza nessa violência, mas consequências sérias e muitas vezes irreversíveis. É desta forma que surge aquele que é provavelmente o melhor filme baseado em quadrinhos em muito tempo, indo na contramão da espetaculização e se encontrando com o que há de humano em todos esses personagens e suas histórias, pois histórias são acima de tudo sobre pessoas.