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  • Crítica | O Nome da Rosa

    Crítica | O Nome da Rosa

    Poucas adaptações cinematográficas de romances literários podem se dizer tão elogiadas e tomadas como referência como foi a de O Nome da Rosa, de Jean-Jacques Annaud, que traduz em tela o material homônimo de Umberto Eco. A primeira cena do filme se dá em meio a uma tela preta, acompanhada de palavras sagradas em uma oração em forma de reza. Logo depois, somos apresentados a William de Baskerville e Adso Van Melk, personagens de Sean Connery e Christian Slater, recém-chegados a um mosteiro ao norte da Itália.

    Antes mesmo de revelar o motivo da chegada dos franciscanos se percebe nos hábitos e falas do homem mais velho um método de dedução e lógica acurados, com semelhanças gigantescas a Sherlock Holmes para além da referência óbvia em seu nome (homenagem ao romance de Arthur Conan Doyle, O Cão dos Baskerville). A motivação se dá graças a venda de parte das riquezas da igreja católica, mas forças externas parecem ir na direção de proibir tal conclave.

    As diferenças entre Adso e William são enormes, enquanto um tem toda uma vida de descobertas para explorar, o outro é descrente vendo o homem bastante distante do Divino, como se a entrega para o sacerdócio tirasse sua inocência e sua capacidade de crer indiscutivelmente na onipresença de Deus, não por conta de inabilidade do ser supremo, e sim pela sujeira inerente aos homens. A observação sobre os rumos da humanidade e o estudo das sagradas escrituras são uma boa possibilidade para explicar tal desencanto.

    A estrutura de narração do velho Melk também contém elementos da literatura de Conan Doyle, em uma emulação do modo que John Watson descrevia os feitos do detetive, inclusive com a mesma admiração entre pupilo e mentor. A vazão ao olhar sem esperança de Baskerville o faz enxergar que a natureza humana se distancia da santidade, mesmo aos que se dedicam aos estudos de Cristo. O modo como a história lida com a libertinagem e as pulsões sexuais, seja dos detentos do mosteiro ou seu aluno são provas do quanto tudo isso faz parte do comportamento normativo do homem. Curiosamente, William não opina sobre nenhuma delas, como se estivesse à frente desse tipo de julgamento moralista.

    O ingresso do desafeto de Baskerville na trama, o inquisidor Bernardo Gui (F. Murray Abraham), faz entender um bocado da falta de esperança do velho protagonista. As torturas, perseguições e a desnecessária demonização de eventos humanos são uma boa mostra da incredulidade dele na boa ação dos homens e sua falta de piedade com a raça. A aura de mistério e acusação ganham força com o decorrer do filme, isso é fortalecido não só pelo roteiro e pela construção de atmosfera organizadas pelo departamento de arte e fotografia, mas também pelos atores. Connery, Slater e Abraham fazem papéis importantes cuja dedicação é total para que o espectador entenda o intuito da história.

    O Nome da Rosa é o resultado de uma análise bem pragmática da condição humana, com uma valorização dos homens cultos e estudiosos, possuindo muitas camadas em si, desde a mais superficial delas como um mero filme de suspense e investigação, até a desconstrução de estereótipos e arquétipos não só ligado à religião, mas também as sociedades (modernas e antigas). Resulta em uma ode a um passado mais simples, porém mais violento, abrilhantada por uma presença forte e carismática de Connery e seus colegas do grande teatro britânico.

    https://www.youtube.com/watch?v=zeB8fWh4X-s

  • Crítica | Inferno na Fronteira

    Crítica | Inferno na Fronteira

    O cinema western sempre se caracterizou por trazer histórias épicas, majoritariamente de mocinhos corretos ou de personagens ambíguos. Inferno na Fronteira, lançado em 2019 mistura esses dois estilos e usa como base avida do lendário cowboy afro-americano Bass Reeves, primeiro vice-marechal negro dos Estados Unidos, enquanto residia no oeste do Rio Mississipi. Durante sua longa carreira entre Arkansas e Oklahoma, foi creditado a ele a prisão de mais de 3000 criminosos.

    Nessa versão conduzida por Wes Miller, Reeves é interpretado por David Gyasi, e a trama se passa no ano de 1875. A produção bastante barata conta com um elenco interessante, como Frank Grillo e Ron Perlman, mas não possui na direção de atores um grande trunfo. Boa parte dos diálogos e interações são tão mal pensados que parecem emular as peças de teatro do ensino fundamental.

    De positivo, existe a forma como a violência é representada, mas que certamente não agradará a todos. Para o fã de filmes de terror que busca uma produção com muito sangue e gore há um certo apelo neste longa. No entanto, isso é muito pouco e o filme soa um bocado trash. Sua narrativa se arrasta ao longo dos quase 90 minutos e faz o filme parece bem mais longo do que realmente é graças as cenas tão mal exploradas e a falta de ritmo. Isso fica bastante claro nas cenas de ação, a maioria delas bastante lenta, fazendo parecer que os pistoleiros estão todos lesionados de tão vagarosos que são os embates.

    O fim de Inferno na Fronteira se dá com uma musica no estilo hip-hop, mas até esse apelo estilístico é tardio, caso fosse lançado antes e na trama principal ao invés de estar nos créditos poderia causar nas cenas algum caráter de inventividade maior e dinamismo. No final, toda a sequência de fatos soa genérica, sem qualquer traço de personalidade ou alma.

    https://www.youtube.com/watch?v=zLKFPrIpHo0

  • Crítica | Stonewall: Onde o Orgulho Começou

    Crítica | Stonewall: Onde o Orgulho Começou

    A invasão policial ao bar Stonewall suscitou um importante levante que culminaria no importante “28 de Junho de 1969”, um marco histórico do movimento LGBT, data que hoje marca o Dia Mundial do Orgulho Gay. É através desse momento tão simbólico que o diretor Roland Emmerich nos guiará, recriando um momento tão significativo de uma luta tão aguerrida ao longo dos Séculos.

    Na trama acompanhamos o desenrolar dos fatos pelos olhos de “Danny” (Jeremy Irvine), um jovem incompreendido, que se vê expulso de casa pelo pai por conta de sua orientação sexual. Danny encontrará em Nova York jovens de históricos parecidos, cada qual marcado por alguma espécie de intolerância. Embora as intenções do diretor sejam as melhores possíveis e o filme possuir um plot interessante e importante, o roteiro é mal desenvolvido e acaba se perdendo ao longo de sua jornada.

    Emmerich não acerta na cadência, não conecta certos pontos e acaba se equivocando em diversas soluções narrativas. Tomadas às devidas proporções, quando uma obra tem como fonte um fato real e não se trata de um documentário, é compreensível e aceitável à existência de alguns elementos fictícios por trás do relato proposto, no entanto, essa é uma escolha narrativa perigosa já que geralmente busca por uma constante romantização dos fatos, pode por consequência distorcer elementos históricos reais. Em certa instância, Emmerich acaba focando-se demais em Danny e com isso deixando como pano de fundo o que deveria ser o verdadeiro cerne da questão, ou seja, o levante iniciado em 28 de Julho em Greenwich Village.

    Se o roteiro assinado por Jon Robin Baitz apresenta-se em diversos instantes com problemas estruturais e escolhas equivocadas, o mesmo não pode ser dito a respeito da fotografia de Markus Förderer que consegue ser bem competente, equilibrando-se em tons suaves (principalmente em alguns flashbacks) e sendo soturno quando necessário. Atores renomados como Ron Perlman e Jonathan Rhys Meyers estão bem em seus papéis, acontece que seus personagens carecem de profundidade e de serem melhores explorados, algo ocasionado como já mencionado acima, pelo nítido fato do excesso dado há Danny, uma escolha narrativa que acaba por sufocar determinado núcleo da obra.

    Emmerich tem um histórico de militância e engajamento em diversos setores sociais, entre eles nos movimentos LGBT, sendo difícil saber se o resultado final de Stonewall se deu em decorrência do afastamento necessário do diretor ou outros problemas. No entanto, ainda que o longa-metragem deslize em diversos momentos, certamente é um projeto em que o diretor colocou muito de si, e ao final ainda consegue transmitir uma tocante e significativa mensagem aos seus espectadores.

    Texto de autoria de Tiago Lopes.

    https://www.youtube.com/watch?v=F_UBiJdUBiA

  • Crítica | Alien: A Ressurreição

    Crítica | Alien: A Ressurreição

    Alien A Ressurreição Versão Estendida

    A versão estendida, como anunciada por Jean Pierre Jeunet, não é uma versão do diretor, mas uma versão alternativa, com novas cenas. A primeira apresenta-se com um hiperclose nas mandíbulas de um inseto, algo semelhante à arcada dentária do Alien. Seus oito minutos a mais de exibição tentam resgatar algo de bom em meio à continuação que segue a pós-morte da protagonista, mas sem qualquer ressalva ou arrependimento por parte de seu realizador.

    O adentrar da nave, exibindo o corpo nu de Sigourney Weaver, só não é mais assustador em sua figuração do que a noção de que o roteiro do filme é assinado por Joss Whedon. O milagre por trás do reavivar da heroína de ação  é dado por uma experiência sem qualquer consentimento da personagem, em que a liberdade de escolha é ignorada e completamente contrariada. Aos poucos, Ripley toma conhecimento do que ocorreu consigo, ainda que sua mente esteja tão diferente que qualquer noção de identidade torna-se bastante discutível.

    A direção de Jeunet imita os elementos de filmes de ação franceses, com exageros em diversos aspectos, como no modo tosco em que os doutores tratam a mulher, correndo risco de morrer o tempo inteiro, dada a força descomunal de Ripley, ainda que nenhum deles tome qualquer precaução. A postura deslocada da personagem lembra o comportamento de Leeloo, personagem de Milla Jovovich em O Quinto Elemento, de Luc Besson. A caricatura da modernidade inclui identificadores que funcionam através do hálito dos indivíduos, abrindo mão de qualquer praticidade para exibir uma alternativa grotesca.

    Os tripulantes da nave/laboratório são ainda mais sádicos do que os vistos em todo o decorrer da franquia, executando experiências com espécimes vivos, pessoas amarradas contra a vontade à espera de terem suas vidas cerceadas em frente às ovas de Alien. Paralelo a isto, um grupo de mercenários entra a bordo, sem qualquer desculpa minimamente plausível, uma intromissão que inclui o contato com a antiga tenente, que se mostra um ás no esporte, a máquina perfeita de combate e predação, e com habilidades semelhantes aos xenomorphos, como a propriedade de sangue corrosivo. O esquadrão de assassinos, que a princípio deveriam ser uma versão dos mariners de Aliens: O Resgate, é caricato, com arquétipos retirados de desenhos animados, só perdendo para os cientistas estúpidos que permitem a fuga de uma das criaturas, do modo mais vergonhoso que o roteiro poderia construir.

    Após a fuga, uma correria desenfreada começa, seguida de uma extensa carreira de eventos bizarros, exibidos à moda da comédia, onde nem o conteúdo gore/trash consegue salvar qualquer suspensão de descrença. Até mesmo a chocante cena em que Ellen Ripley encontra o laboratório repleto de cópias defeituosas, que deveria prioritariamente causar emoção, provoca náuseas, na personagem e no espectador.

    As sequências de ação mal feitas, as situações constrangedoras e o roteiro repleto de personagens estranhos ainda não são suficientes. O bizarro se instala ao apresentar uma evolução da Rainha, cuja herança da amálgama com Ripley resulta num parto semelhante ao humano, com um útero fértil, dito pelo doutor Jonathan Godiman (Brad Dourif), que narra o nascimento do Alien albino, o qual, ao invés de simbolizar o avanço interespécie, acaba mostrando-se uma criatura rudimentar risível.

    Não bastasse unir os inimigos mortais numa tensa relação de familiaridade e sedução, a fita de Jeunet ainda consegue apresentar uma caracterização de Ripley assustadoramente diferente de tudo que foi visto antes, desconfigurando por completo sua persona. A luta final e a solução encontrada para assassinar o Alien são um acinte, apresentando a despressurização e dilaceração da criatura em um movimento tão mortífero que encerraria a franquia, apesar dos desejos de continuar a partir dali. Nem mesmo a desolação da Terra parecia ser algo diante de tamanha catástrofe cinematográfica que é Alien: A Ressurreição.

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  • Crítica | Festa No Céu

    Crítica | Festa No Céu

    As cabeças protuberantes dos personagens fazem com que abordagem cartunesca de Festa no Céu se assemelhe visualmente a uma quantidade significante de outras animações, desde Jimmy Neutron até os seriados em duas dimensões, como Meninas Super Poderosas, herdando destes o ponto em comum, o de conter muita cor, saturando a imaginação infantil e algum subtexto, entendido na maioria das vezes por quem tem um maior repertório e vivência. A jornada de “livro da vida” começa em um museu, numa jornada protagonizada por alunos problemáticos obrigados a visitar o local, onde são sendo recebidos por uma bela guia, levemente sexualizada, que começa a contar uma história sobre o México, usando as figuras folclóricas do país norte-americano para cooptar a atenção dos que excursionam e da plateia.

    A coloração ganha contornos belíssimos ao se misturar ao gráfico tridimensional, sob comando de Jorge R. Gutierrez, para compor um quadro singular, valorizando os aspectos espiritualistas da tradição mexicana. A escolha do diretor foi pródiga, especialmente por sua experiência com a série El Tigre: As Aventuras de Manny Rivera. Quando Manolo Sanchez (Diego Luna) aparece, o carisma do filme já é estabelecido, fortificando ainda mais seu drama como órfão de mãe, que tem de conviver com a ausência da progenitora e com a inevitabilidade da morte, caracterizada por De La Muerte (Kate Del Castillo), a qual, por sua vez, acompanha a trajetória dos seres mostrados em tela.

    Manolo cresce em meio a expectativas de sua família quanto ao seu futuro. Seu violão e sua arte representam a doçura da infância, como um modo de comunicação poético em essência que o faz relembrar as perdas que teve. Este ideal esbarra na condição de toureiro, um ofício que está ligado tradicionalmente ao clã Sanchez e ao seu vilarejo. Manolo cresceu com dois amigos, Joaquin (Channing Tatum), que se tornou um exímio manipulador de touradas, e Maria (Zoe Saldana), que deixou a cidade há muitos anos para retornar já adulta. Obviamente, instaura-se um triângulo amoroso.

    Já adulto, o trio de protagonistas é vigiado pelas entidades espirituais La Muerte e Xibalba (Ron Perlman), que veem desabrochar a sexualidade — claro, suavizada para os infantes –, eufemisticamente tratada como amor e paixão. Maria percebe a abissal diferença entre as posturas de seus antigos amigos, um com pompa, fama e muito dinheiro, enquanto outro é munido de sentimentalismo, singeleza e inspiração. A aposta entre as figuras sobrenaturais chega ao cúmulo de ferir a moça, musa dos dois antigos parceiros. Afim de perseguir sua amada, Manolo se submete a morte, viajando para o além-vida, onde pode finalmente reencontrar sua finada mãe.

    A viagem ao mundo incorpóreo é bela, ainda mais repleta de cores. Seu encontro com toda a família Sanchez é bonito, revelando honrarias bem distantes do fracasso econômico de quando eram todos vivos, representando a fuga da decadência e retorno a glória, ainda que o viés de negação esteja implícito. Logo, ele percebe o ardil que sofreu, sendo enganado ao ser levado a Terra das Lembranças.

    A estratégia de trapaça logo se prova um erro, em ambas as dimensões. Enquanto a cidade de San Angel é atacada por um malfeitor, sem qualquer perspectiva de salvação, mesmo com o bravo Joaquin presente, Manolo é obrigado a enfrentar seus maiores medos no além-vida, tendo de combater ao mesmo tempo todos os touros que seus familiares assassinaram. Além da discussão óbvia da sensibilidade contra a brutalidade, há uma perene crítica às touradas e à fútil prática de assassinato de animais unicamente por entretenimento, cujos significados não são pasteurizados ou transformados em discursos baratos, transmitindo uma reflexão ligada ao perdão, mais forte do que qualquer panfletarismo exacerbado.

    Apesar de apresentar alguns pares de clichês em seu desfecho, utilizando um fechamento repleto de música e felicidade, toda a construção do romance e da felicidade mútua é feita de modo natural, formando o quadro gradativamente, cuja mensagem não subestima o entendimento, sequer o das crianças. A história de Festa no Céu torna-se eterna e até encorajadora, apresentando uma atmosfera semelhante à vista nos filmes de seu produtor, Guillermo Del Toro, com um caráter edificante que faz refletir além do lugar comum das animações norte-americanas.

  • O Asfalto, a Tragédia e o Carrasco: o Fim de Sons of Anarchy

    O Asfalto, a Tragédia e o Carrasco: o Fim de Sons of Anarchy

    poster-sons-of-anarchy-season-7Embalado por uma trilha sonora singular, que varia entre o rock’n roll clássico, folk e um bocado de blues, os solos de guitarra e a base do baixo ajudam a aumentar o odor de gasolina, assim como o incômodo gosto de sangue que teima em predominar nos lábios, após sucessivos embates físicos, causados em sua maioria por motivos banais, como o bom e velho machismo, provocado por alguma ação que conflitava com o respeito que não foi dado em sua medida exata aqueles que protagonizam o seriado.

    Sons of Anarchy usa avatares tipicamente masculinos, como a gangue de tatuados destruidores de lado que cortam o Norte da Califórnia, numa cidade fictícia chamada Charming atrás de algo, cujo objetivo ainda não é completamente revelado, pois parece ter a ver com um desejo interno e incontido. Toda a selvageria deles esconde uma vida repleta de sofrimentos e ardor na alma. Essas sensações são flagradas logo no início, ainda no piloto, que mostra o drama de Jackson Jax Teller (Charlie Hunnam), cujo drama familiar é bastante calamitoso, ao enxergar sua ex-esposa Wendy (Drea De Matteo), grávida, sofrendo uma terrível caso de overdose.

    Dentro do grupo de motoqueiros é notada uma hierarquia clara, com a obrigatoriedade de ser respeitada. Por ser formado em sua maioria por “senhores” de idade avançada, com quase todos ultrapassando os quarenta, é natural que Jax não seja deles o líder, ainda que tudo leve a crer que ele possivelmente assumirá este papel de destaque. Quem dita as regras no meio dos inconsequentes homens adultos é Clarence ‘Clay’ Morrow, personagem do veterano Ron Perlman, que enfim pode interpretar um sujeito de seu tempo, um sujeito castigado pela vida e que já tem vivência o suficiente para decidir de maneira resoluta e sábia todas as diretrizes dos Filhos da Anarquia. Clay fundou o grupo junto ao pai de Jax, e por isso o encara como se fosse uma extensão de seu antigo amigo, além é claro de vê-lo como o natural sucessor como o lobo alfa da alcateia.

    Problemas reais e rotineiros batem à porta dos que são flagrados pelas câmeras. Para maximizar a sensação de realidade, a lente usa artifícios de primeira pessoa, inserindo o público nos problemas dos personagens. Desde a percepção de que ser pai não era algo que Jax desejou desde o começo, até a recusa ao uso das mesmas substâncias que quase fizeram sua ex abortar. Como nas telenovelas há mil tramas paralelas, como os da mãe de matriarca dos Teller, Gemma Teller Morrow (Katey Sagal), que não cansa de dar lições de moral e de julgar seu herdeiro, ao mesmo tempo em que é casada com o melhor amigo de seu ex-marido. A frequência que faz a cama de Clay gera muitas dúvidas a sua moral, do ponto de vista ético, mas é aceitável a todos os personagens, já que o casal tem poderes máximos sobre o Clube. Partes importantes da sua intimidade são discutidas até mesmo a velhice que se aproxima, cada vez mais evidente em suas marcas de expressão e em suas transas com o chefe do bando. O fato de ser encarada pela infiéis que seguem seu marido mostra um emocional abalada, que pioraria com o decorrer dos anos.

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    Os diferentes núcleos coexistem de modo equilibrado e hermético, sem causar uma gangorra de importância, uma vez que foram pensados em sua origem para ser assim e extremamente calculado, para que o formato não atrapalhasse o conteúdo. A capa de violência que permeia o modus operandi meio mafioso de Sons of Anarchy não esconde o quão difícil são as questões emocionais que estes sofrem. O sangue sobre a superfície branca de pele unidos as flashs variantes entre a carbonização dos inimigos e a overdose dos que cercam Jax mostram a poesia que existe no árido universo dos anti-heróis mal encarados que protagonizam o seriado.

    Apesar de ser este um universo majoritariamente masculinizado, há alguns papéis femininos de destaque, que guardam em si poder e influência quase ilimitados, seja pelos futuros nas ações dos que extorquem, pela singularidade de cada uma das personalidades ou pela vida pessoal dos mandantes do grupo de motociclistas. Gemma mostra suas garras, sempre influindo em como se dá o desenvolvimento do filho, e consequentemente, o presente de gangue. Sua preocupação é que seu filho siga os bons momentos de seu pai, e não aqueles em que ele sofreu “derrocadas. É curioso como mesmo com toda a rotina bandida, os integrantes do bando conseguem viver suas vidas de modo comum, como qualquer outro espécime comum da sociedade, frequentando festas de crianças, batizados e afins. Ao mesmo tempo que tais transições espirituais ocorrem, cada um dos personagens recorrer a droga necessária a si, para escapar da miséria em que a vida deste está, como se viver fosse um fardo demasiado pesado para si, e verdadeiramente o é.

    O modo como alguns ciclos se cruzam é bastante peculiar, como os da crise que a gangue sofre por ser indiciada, por tráfico de armas, o que faz Clay ser encarcerado que ocorrem coincidentemente com a menopausa de sua esposa. A sensação de que o tempo passou e de que eles já não são mais tão “jovens” acomete os pares. Os tempos pedem por mudanças, por sucessão, isso ainda no primeiro ano de série.

    A “recepção” dada a quem trai o clube é severo, já que o tratamento dado a cada um dos internos é familiar, eles não são apenas adoradores de velocidade com tatuagens e cabelos desgrenhados, a um forte sentimento de pertencimento mútuo e de interdependência. As cobranças são todas feitas em níveis pessoais. É mais que algo somente profissional, daí a veemência em tratar os assuntos de deslealdade, pois as atitudes os ferem emocionalmente.

    A rivalidade entre a agente federal June Stahl (Ally Walker) e o clube aumenta com o desenrolar dos fatos do primeiro ano, fazendo desta relação algo dicotômico, por vezes até erótico, quando se põe a voluptuosa mulher diante dos machos alfa, Jax e Clay. O tratar com as mulheres é sempre uma questão delicada, especialmente para Jax, ter de lidar com sua ex saindo da reabilitação e com a situação difícil que vive com Tara Knowles (Maggie Siff) é demasiado difícil e até doloroso. O primeiro período termina em meio a uma questão deveras pessoal com Opie (Ryan Hurst), que consegue ser revertida graças a uma manobra de roteiro muito bem pensada, e claro, cabível. Os ecos desses dramas prosseguem no início da segunda temporada, sem qualquer fôlego, continuando a história exatamente da onde parou, usando uns poucos preâmbulos para introduzir o expectador na trama novamente.

    A nova concorrência, formada por arianos racistas é de enfrentamento severo. A alcunha do primeiro episódio dá a tônica, Albification introduz Ethan Zobelle (vivido por Adam Arkim) e AJ Weston (Henry Rollins) que lideram o bando. Os nazistas mexem drasticamente com a rotina de Charming, e agem de modo truculento contra as lideranças de Sam Crow, tocando em pontos muito pessoais de suas vidas.

    A trajetória de Jax em tentar legalizar as atividades do clube vão de encontro aos desejos de seu falecido pai, registradas em seu diário. O que deveria ser o passo de afirmação rumo o endireitamento de seus passos, acaba sendo seu erro fatal, uma vez que cobra um alto preço de sangue no decorrer do seriado.

    Sons of Anarchy parece o filho ilegítimo de Easy Rider e da produção de Corman, os Anjos Selvagens, mais bastardo ainda que os originais, usando o estilo de vida em duas rodas para mostrar uma outra faceta da vida marginal, semelhante ao que ocorre entre gangues de negros, latinos e mafiosos. Seu viés é muito mais adulto e bandido que o dos filmes dos anos 60, não contém tanto experimentalismo psicodélico por ser uma evolução do conceito. É como se o “sonho” e o romantismo tivessem findado, e o que sobrou foi a dura realidade, repleta de ossos e dentes quebrados.

    A crua realidade não guarda sequer as relações familiares. Os conflitos edipianos entre Jax e Clay se aprofundam, tanto pela soberania do clube quanto pelo futuro de seus negócios. O embate ideológicos se dá em muitos níveis. A situação fica tão insustentável, que os outros membros discutem o futuro deles a despeito do presidente e do vice. A força da atuação de Adam Arkim é muito grande, sua atuação apesar de comedida é muito bem pensada. Seu vilão serve muito bem a trama e não denigre o roteiro.

    O desfecho do ano é bastante emocional e catastrófico, com os membros da família Teller/Morrow ou em apuros ou foragidos, com todos eles devastados emocionalmente, e reagindo de modo diverso e singular cada um. Um dos nazistas rapta Abel, o filho pequeno de Jax e isso o faz desejar estar destruído. A caçada ao menin faz todo o clube se embrenhar numa pouco consequente jornada, nada comparada a rotina deles, já que aqueles eram tempos atípicos e loucos. A intrínseca de relação de filhos tirados dos pais é algo que aumenta ainda mais o escopo de dualidade da série, até a motivação do raptor de Abel é discutível, visto que ele acredita terem sido os “Sons” responsáveis pela queda do seu menino. A montanha de sentimentos remete a Babel, uma torre que torna-se cada vez mais perigosa, quanto mais alta fica, mais indistiguível fica a fala de quem julga o próprio discurso o mais correto.

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    Apesar da enrolação que permeia o terceiro ano, é possível notar alguns pontos, como a necessidade de que as decisões mais urgentes tenham o martelo batido somente após a unanimidade do clube. A entrada ou exclusão de membros por exemplo. A fuga de Gemma faz o clube atravessar o oceano, atrás das respostas que tanto precisam, atrás do herdeiro, e em busca de relevar a demora com que são levadas todos os acontecimentos. A mudança de ares ultrapassa a distância geográfica entre Charming e a Irlanda, refletindo-se até na cena de abertura, que tem os acordes de guitarra substituídos por sons tipicamente irlandeses.

    A estadia no Reino Unido traz a tona lembranças agridoces a Gemma, tocantes ao seu passado com John Teller, mas na maior parte do decorrer anual os eventos são arrastados e anti-climáticos, exceto pela correria desenfreada do season finale, surpreendentemente agressivo. Aos poucos, todos os perigos que poderiam inferir medo no público a respeito de seus heróis vão aos poucos caindo por terra, dando lugar a trama da quarta temporada. Neste momento, o comando policial em Charming muda, aproveitando o ensejo de estar todo o clube atrás das grades, o hiato é sentido no crescimento dos filhos de Jax e nas mudanças na zona urbana, mas é ainda mais evidente com a troca de comando nas patrulhas, que mesmo se mostrando nada coniventes com o clube, não impedem o acerto de contas deveras sangrentos dos Sons.

    O retorno a ação fez com que algumas mudanças no modus operandi do clube fossem forçadas, deixando alguns dos membros da velha guarda incomodados pelo desprezo que acham estar recebendo. Paralelo a isso, os relatórios de John Teller são escrutinados por Gemma, que acredita que ou Jax ou Tara estão cientes as anotações que a entregam. Para piorar Jackson quer se retirar do grupo, para cuidar de sua família e dar vazão aos desejos de seu pai.

    A descoberta dos motivos da morte de John Teller são agravados. O mergulho dentro de suas memórias registradas no diário faz com que todos que entram em contato com elas se sintam enojados. Toda a situação passa a ser ainda mais grave ao se declarar abertamente quem havia feito o trabalho. Para piorar, a situação interna só se agrava, com o começo dos negócios com os latinos (Wayans), com o transporte de coca. Bobby Munson (Mark Boone Junior) chega até a contestar a autoridade de seu presidente, em nome da segurança do clube.

    A realidade é que mesmo quando os problemas sobrepõem um ao outro, as discussões e os dramas ficam ainda mais intensos e perigosos. O preço cobrado por viver dentro do clube é alto, preço de morte na maioria das vezes. Se os membros de Sons of Anarchy não caem ante a vida, as suas vidas tornam-se algo miserável, em nome da unicidade do grupo. A cisão de Jax com o MC é finalmente anunciando isso a Clay e Bobby, reconfigurando toda a hierarquia do grupo. Tudo se dissolve, Piney Winston (William Lucking) é assassinado, Otto Dellaney ( Kurt Sutter) finalmente entrega os seus por causa de promessas não cumpridas, o que faz Bobby ir preso, Clay é alvejado por Opie.

    Gemma revela o segredo que havia nas cartas para seu filho, claro, escondendo toda a sua participação no assassinato de John Teller, culpando Clay por tudo, fazendo seu argumento parecer algo legítimo e baseado somente nas especulações das cartas. Os sentimentos que atacam Jackson são variados, e sua decisão (difícil) o obriga a tomar as rédeas dos SoA bem momento em que ele sairia, uma vez que o presidente está hospitalizado, e que está em vias de perecer, claro. A queda do antigo rei faz ele ter que tomar a atitude de manejar o martelo. A imagem variante entre a geração moderna e a do passado é um artifício interessante, desenhando um paralelo visual belo e maldito entre Jackson e John Teller, talvez prevendo o mesmo destino, compartilhado entre as duas gerações, uma maldição hereditária.

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    A presença de Clay no clube, no começo do quinto ano o faz parecer um morto andante, um esboço do que foi o líder do grupo por tantos anos. O incrível é que mesmo tentando consertar as mazelas deixadas por seus antecessores, Jax não consegue afastar o espírito da morte de perto de todos os que o envolve. Como era Michael Corleone, ele tenta sair, mas não consegue, o rastro de morte está inexoravelmente ligado ao seu destino, é um pecado de sangue, e a presença de um vilão tão forte e presente como é Damon Pope (Harrold Perrineau), ele perde ainda mais chances de conseguir se livrar do seu fardo. Nem mesmo o fantasma de seu pai é capaz de fazê-lo mudar. Jackson vê seu clube ser aprisionado e sofrer o diabo dentro do cárcere, sendo postos para lutar como gladiadores, mas não ante uma platéia enfurecida, e sim testemunhado por pessoas que temem ver o sofrimento de quem luta.

    Os eventos ocorridos neste ano são muito mais violentos que todos os outros, todos os motivos estão intimamente ligados a operação dentro do clube. A relação conturbada entre Gemma e Tara dá sinais de que vai finalmente sarar, mas assim que começa a avançar, os tragicômicos acontecimentos faz com que tudo retroceda, afinal, pôr em risco as vidas de Abel e Thomas é demasiado sério, talvez até mais do que as consequências dos outros ator conturbados, pois paralelamente a isto, a sabotagem interno do MC é descoberta por Wayne Unser (Dayton Callie), quase ligando estes a quem foi de fato o mandante.

    As coisas entre Clay e Jax voltam a ficar péssimas, só piorando com o tempo. Após ressurgir das cinzas, e sexagenário ex-presidente vê ruir um plano seu, deveras mal construído, especialmente por este confiar em quem não deveria. Ao descobrir tudo, Jackie consegue falar a sua “old lady” o que ele pensa a respeito de seu antigo padrasto. Após uma guerra não declarada – que se estendeu demasiado, aliás – o antigo presidente assume os seus próprios erros, sendo assim expulso. Todo o stress provindo da situação caótica em que o clube está e da perseguição que sua esposa sofre faz Jax partir para uma instabilidade mental, que passa a ser seu comportamento corriqueiro. Ele agride todos os que se opõem a ele, até sua ex-mulher, culpando-a de um modo completamente desnecessário, passando por cima da reabilitação dela.

    A vivência ligada a violência em que Jackson está metido o faz ficar insensível a maioria dos dramas humanos, sejam dos que estão distantes, dos que vivem as mazelas da sociedade de Charming e mesmo aqueles que o cercam. Apesar da enorme chance de ser diferente de seus antepassados, Jax mostra ser muito semelhante aos predecessores. Tudo o que ele ama se afasta, vai para longe, e mesmo com a alternativa dele se voltar na direção dos seus, ele não o faz, seja por impossibilidades ligadas ao MC ou imbróglios legais. Ao final do quinto ano, o presidente assiste a derrocada dos outros personagens – múltiplos, e bem mais consequentes que os outros anos – de modo anestesiado. Gemma toma o lugar de Tara, na mesma posição em que a quarta temporada se encerrou, e é incrível como em cada season finale a qualidade sobe um pouco.

    Como seu pai, Jax começa um diário, voltado para os seus herdeiros, contando a sua vivência, lamentando as suas perdas, seja a de Bobby como VP, ou de Tara, ainda encarcerada, não sem antes anunciar que iria para o Oregon, até sem seu marido. O modo as coisas são conduzidas pioram o escopo de violência, já que Clay é inquerido a entregar seus antigos asseclas, na prisão e Otto é perseguido por um ex-federal que consegue se alçar a um papel bem mais presente do que o de um simples coadjuvante. O círculo de relações dentro do cárcere é extremamente bárbaro, rivalizando em crueldade com a inimizade que ocorre entre SAMCRO e os irlandeses, especialmente com Galen “Galaam” O’Shay, membro do IRA vivido por Timothy V. Murphy, que por sua vez não suporta mais a arbitrariedade do presidente que exercia seu cargo desde o quinto ano.

    Tara, já fora da prisão segue com seu plano de sair de Charming, fazendo alianças com pessoas que antes pareciam “mortas”, dado o sumiço que tiveram na trama. Aos poucos ela passa a não confiar mais em quem é do clã Teller, e claro, tem razões muito plausiveis e justificadas, mas que não podem ter sua vazão estabelecida, já que Galaam e Jax entram em uma guerra, quue impõe um estado de sitio a todos os que estão envolvidos com o Clube.

    SONS OF ANARCHY: L-R: Katey Sagal and Ron Perlman. CR: James Minchin III / FXA crise familiar dos Teller nunca foi tão intensa, seja na disputa entre Gemma e sua nora, ou no distanciamento do casal de protagonistas. Muitos traumas acontecem sobre o seio familiar, e embaixo deles corre um terrível rio de sangue e amargura. No momento em que Jax vê a possibilidade de findar com os irlandeses, ele não titubeia, sob a ordem de que tudo foi acordado em voto – aliás, isto é repetido inúmeras vezes. Mas o ápice do ano é quando finalmente depõem o antigo rei. A cena após o martelo batido é seguida de um silêncio retumbante, sem qualquer menção a música ou trilha, somente o som ambiente, quando não o total emudecimento. O choque é dos personagens e da platéia, o preenchimento da surpresa quase inebria o público, ao mesmo tempo em que aturde alguns dos caracteres.

    Ao se aproximar da season finale, Jax repete a tática que havia feito com Pope para eliminar os cabeças dos negócios ilegais dele, produzindo uma enorme matança, como a vista no Batismo escrito por Mario Puzo em O Poderoso Chefão. No entanto, o troco não demora tanto quanto na saga de Michael Corleone, uma vez que quem ele amou o apunhala de modo cruel e egoísta, em nome da paz de sua família, o que é obviamente uma questão muito contestável. A história de John Teller se repete miseravelmente com Jackson, inclusive nos relatos dos diários.

    Nem reimaginando toda a saga e analisando as perdas sofridas e as mortes impingidas pelo clube poderia se encarar com naturalidade as consequências dos atos mostradas no season finale. A máxima bíblica de que o salário do pecado é a morte não poderia ser mais implacável com Jackson Teller, pôs ele se vê sem sua liberdade, sem os filhos e sem ter quem cuide de seus meninos. Mesmo os que antes estavam lá para arrumar a bagunça que o MC fazia não mais estão. O sexto ano conseguiu ser mais produtivo para o ceifeiro do que o quinto, impressionantemente. Como a trilha (sempre pontual ao longo do show) de Noah Gundersen & The forest Rangers em The Day is Gone, cita de forma muito certeiro a inexorabilidade do destino e do quanto a mudança chegou tarde a eles.

    SoA 9

    O derradeiro ano começa diferente das expectativas deixadas no último season finale. Jax está preso, executando alguns inimigos, associando-os aos nazistas. Gemma age com tamanha desfaçatez, cuidando dos netos mesmo com seus últimos atos, enquanto convive com a culpa que tenta tomá-la, motivo que a obriga a abrigar Juan Carlos Juice Ortiz(Theo Rossi). Jax logo sai da cadeia, uma vez que seu acordo passa a valer menos sem as garantias dadas a Tara.

    Uma rixa com os chineses se instaura, pois Jax acredita que o responsável pelo assassinato de sua old lady foi motivada por eles. Retaliações acontecem de ambos os lados, muito sangue é derramado graças a mentira de Gemma. Nero está enfiado no fogo cruzado, vendo todos os seus negócios ruírem graças a proximidade com Sam Crow, como se a aliança entre ambos fosse maldita, trazendo o salário de morte que lhe é devido pelos pecados que cometeu.

    No entanto, o receio em ter as contas acertadas com o próprio filho fazem Gemma fraquejar, cometendo o ato falho de confessar assassinato na casa de seus netos, perto do pequeno Abel, que cada vez mais estranha a falta de sua mãe. Os entes queridos do Clube vivem em perigo ainda maior do que o de costume, e eles são isolados, do resto de Charming.

    Em meio a mortes de personagens importantes para toda a trama, a verdades vão aparecendo. Wendy recupera aos poucos a confiança de Jax, em virtude do modo como ela se portou e do “forçado” afastamento de Gemma das crianças, esses causados pelo comportamento depressivo de Abel, depois de saber o destino de sua “segunda” mãe. A gratidão da ex-viciada não permitia que ela tivesse um segredo tão grande com seu antigo amante.

    Aos poucos as peças se mostram a Jackson, com o depoimento de uma criança e a descoberta do encobertamento de Juice. O encontro, na cadeia, entre Jackson e Juice é obviamente revelador, por mostrar que os chineses não tinham culpa, exibindo que toda a guerra foi á toa, além é claro do pesado segredo a respeito da morte de Tara.

    Para quem assiste o drama completo de longe, é impossível escolher lado, uma vez que todos estão intimamente ligados para o bem e para o mal. Absorta pela culpa, Gemma conversa com o que seria o fantasma de sua nora. Convivendo com as consequências de seus atos, Jax vê tudo ruir a sua volta, entendendo aos poucos que a culpa por seu pai ter morrido não era só de Clay, tampouco de Gemma. Uma das motivações circuladas seria o suicídio, motivado pela necessidade de ver sua família e clube vivos, a despeito de sua existência. Essa possibilidade ganha cada vez mais força, especialmente após os fatídicos acontecimentos do penúltimo episódio. Nem mesmo todo o montante de corpos preparou o público para os acontecimentos, mesmo com todos os indícios apontando para isto.

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    Após o matricídio, Jackson tem que finalmente responder por todo rastro de corpos e claro, pela desolação de seu espírito, devastado após a execução de mais uma pessoa que ama. O destino decidido pelos presidentes dos Sons Of Anarchy de todo o país torna-se incógnito, revelado somente após o acerto de contas com seus antigos inimigos. De positivo, há o acréscimo um membro negro, rompendo com uma tradição secular de exclusão dos diferentes.

    Assumir a sua fraqueza faz Jackson se diferenciar do mesmo personagem apresentado sete anos antes. A evolução, fruto do que entendeu dos escritos de John Teller o faz querer parar, para que o mesmo destino não acometesse a terceira geração de sua família, uma tentativa possivelmente tardia de salvar Abel e Thomas do destino da marginalidade, assassinato e criminalidade. A recuperação é o caminho decente para a nova Wendy, mas não é o suficiente para o protagonista.

    A retirada dele “coincidiria” com o dia mal de todos os seus adversários, os homens maus. Resgatando novamente os acontecimentos do Batismo impetrado por Michael Corleone nos minutos finais de Poderoso Chefão, Jax é pela última vez o carrasco, o júri e o executor de todos aqueles que fizeram de Charming o mar de sangue que se tornou. Caberia aos seus antigos parceiros decepar a última cabeça, daquele que acumulou o maior número de assassinatos. Os meninos poderiam enfim crescer sem a presença venenosa dos membros do clã Teller, sem qualquer influência maléfica, sem um exemplo ruim a seguir.

    Os corvos retomam a estrada, o asfalto rachado ganha contornos belos, como uma paixão irresistível para o antigo rei. A chegada de Mister Mayhem se dá com os braços abertos, como num terno abraço.

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  • Crítica | Círculo de Fogo

    Crítica | Círculo de Fogo

    O mundo se tornou um lugar chato. Realismo e verossimilhança viraram palavras de ordem no cinema, e até os filmes de ação e aventura hoje estão acuados. Isso tanto por críticos que querem ver profundidade artística em tudo, quanto por grande parte dos fãs, que passaram a ter um alto grau de exigência com cada mínimo detalhe. A solução muitas vezes é cair na auto-paródia, como se o gênero tivesse vergonha de si mesmo e precisasse pedir desculpas por oferecer apenas entretenimento. Isto posto, OBRIGADO, GUILLERMO DEL TORO. Mais do que gratificante ver um diretor gabaritado entregar um produto tão sensacional quanto Círculo de Fogo. Um blockbuster no mais puro sentido da palavra, que diverte se levando a sério dentro de seu maluco universo particular – e não há absolutamente nada de errado com isso.

    O filme situa rapidamente o cenário: num futuro próximo, a humanidade está em guerra contra seres denominados kaiju (monstro gigante em japonês), que invadem nosso mundo através de uma fenda interdimensional localizada no fundo do Oceano Pacífico. De tempos em tempos, um dos bichos emerge e vai tocar o terror nas cidades costeiras. Quando armas convencionais se mostram ineficazes, uma nova solução se faz necessária. E já aqui, com poucos minutos de projeção, o longa rompe totalmente com conceitos tão mundanos e limitados como realismo ou lógica. Tentar desenvolver um novo tipo de bomba, ou até mesmo uma arma biológica (já que os inimigos são seres vivos)? Pra quê, se é infinitamente mais legal construir robôs gigantes pra dar porrada nos monstros?

    Só que nem tudo são flores. Após alguns anos de vitórias, os jaegers (caçadores, em alemão) e seus pilotos não estão mais dando conta do recado. Monstros maiores, mais fortes, inteligentes e adaptáveis passam a aparecer com mais frequência, e os governos mundiais decidem desativar a iniciativa e investir na construção de gigantescas muralhas litorâneas – ideia “genial” e pouco tranquilizadora. Porém, o comandante do projeto jaeger, marechal Stacker Pentcost (Idris Elba), decide tentar uma última ação desesperada pra salvar o mundo. Pra isso, ele vai depender de um talentoso ex-piloto, há anos afastado por conta de uma tragédia pessoal (Charlie Hunnam), e de uma novata promissora, mas com zero de experiência (Rinko Kikuchi).

    Tudo no filme é familiar, pra não dizer clichê, mas perfeitamente executado. O grande charme da produção é combinar a estrutura narrativa/dramática e de personagens tipicamente hollywoodiana com premissa e ambientação gritantemente japonesas. E ao contrário do que a galera mais leite com pera esperneou, não é uma simples cópia de Evangelion (como se este mangá/anime tivesse inventado robôs e monstros gigantes). As similaridades são grandes, mas Círculo de Fogo referencia toda uma tradição nipônica que remete a inúmeras animações, tokusatsus oitentistas e até os ancestrais filmes do Godzilla e afins. Desnecessário dizer o quanto isso dialoga com o coração de quem viveu a infância a partir dos anos 80 – e ainda não esqueceu dela.

    O roteiro, assinado por Del Toro em parceira com Travis Beacham, é muito preciso ao trabalhar tudo em função da própria trama. Como são necessários dois pilotos em perfeita sincronia mental para controlar um jaeger (um único cérebro humano não suporta a carga), o desenvolvimento dos personagens acontece na iminência de, e durante, os combates. Que por sinal, são vários e nem um pouco maçantes. O ritmo construído cria a tensão necessária, e a alivia sem exagerar, não perdendo assim o impacto das cenas de ação (exatamente, ao contrário de Transformers). As lutas são naturalmente o ponto alto do filme. O alto orçamento aliado ao apurado senso estético do diretor resultou em monstros e robôs com características distintas e marcantes. Os ambientes também variam, os quebra-paus acontecem em alto-mar, no meio das cidades, nas profundezas do oceano… e é um mais épico que o outro. Os kaijus impressionam por sua ferocidade, enquanto os jaegers, pesadões como seria de se esperar de centenas toneladas de metal, apresentam variadas armas que emocionam a criança interior de cada um. Como não amar um “soco foguete” ou um botão “ativar espada”?

    Dentre os atores, Charlie Hunnam (mais conhecido por estrelar a série Sons of Anarchy) faz um feijão com arroz como um protagonista padrão, que supera rapidamente suas inseguranças quando é chamado à ação. Kikuchi se sai até melhor, conseguindo retratar o turbilhão de emoções de sua personagem de maneira contida, também um padrão, só que oriental. Mas no caso dela, incomoda mais a superação relâmpago do trauma pessoal. Pra contra-balancear, a química entre os dois convence logo de cara, fazendo com ambos cresçam como dupla muito mais do que poderiam fazer individualmente. Dessa forma, nos importamos com os personagens, e as cenas de ação ganham em peso dramático.

    O bom ator Idris Elba mostra que Samuel L Jackson poderia se aposentar hoje, que o cargo de “boss negão mothafucka” estaria muito bem preenchido. Cabem a ele os inevitáveis discursos motivacionais com frases de efeito – “Hoje vamos cancelar o apocalipse”, impossível não seguir um cara desses. Charles Day e Burn Gorman servem como um bom alívio cômico com sua divertida dupla de cientistas que implicam um com o outro. Max Martini e Robert Kazinsky, como os pilotos australianos que são pai e filho, trazem uma dinâmica muito interessante no limitado espaço que têm. Por fim, Ron Perlman não consegue NÃO ser estiloso, mas seu personagem é um tanto quanto inútil. Hannibal Chau, o negociante de partes de kaiju mortos (um conceito curioso, mas nem um pouco explorado), na prática não serve pra nada. Provavelmente, o Hellboy estava lá só pra constar, na base da camaradagem com o diretor.

    Conforme o filme vai se aproximando do final, os problemas vão aparecendo. Não propriamente erros, mas situações um tanto forçadas e exageradas até mesmo dentro do contexto. Por exemplo, os robôs são arregaçados e rapidamente estão prontos pra outra. Isso, somado à já citada resolução muito repentina dos conflitos individuais dos protagonistas, até poderia tirar alguns pontos do filme. Só que o jogo, amigo, já está ganho há muito tempo. O espetáculo é tão magistralmente orquestrado e conduzido, que Círculo de Fogo se torna maior que suas próprias míseras falhas. A exemplo de Os Vingadores, é o ápice do massavéio bem executado. Mais uma vez, obrigado, Del Toro. O Gigante Guerreiro Daileon está orgulhoso.

    Texto de autoria de Jackson Good.