Resenha | F – Antônio Xerxenesky
A dialética entre a arte do cinema, e a assim chamada arte do assassinato, em F, nunca foi tão bem explorada pela literatura brasileira contemporânea. Combinando a alma ensaística, rebelde, visionária e tresloucada de Verdades e Mentiras, com o artisticamente sedutor e charmoso mundo dos matadores de aluguel, o jovem escritor Antônio Xerxenesky une essas duas “artes” tal qual uma relação cuja intensidade e atração de cada um faz com que se choquem, de forma inesquecível, pintando o mundo de faz de conta do cinema com a realidade dura e misteriosa dos crimes encomendados pelas vozes sem rosto de quem rege o mundo detrás das cortinas. Nos anos 1980, a sociedade já havia mudado, o amor já começava a esfriar, os romances já paravam de durar. Nos anos 80, alguém queria matar Orson Welles.
E quem desejava seu fim, pouco importa. Tudo o que Xerxenesky se interessa, em sua maravilhosa obra da editora Rocco, é com aquela menina que vai sujar as mãos com o sangue de um dos mestres supremos da sétima-arte, a mente e os esforços por trás de O Terceiro Homem, A Marca da Maldade e O Processo (três dos melhores filmes já feitos). No caso, Ana, a mulher que consegue tomar café com sua vítima em um luxuoso restaurante de Paris, minutos antes de abatê-lo, isolados num quarto de hotel. Diante da morte de seu pai, Ana é retirada do seio banal de sua família, no Rio de Janeiro, e iniciada pelo tio José no mundo das armas, dos negócios mortais, e na certeza de que a vida de alguns vale mais (muito, muito mais) que a de outros. Após treinar em Cuba com guerrilheiros que fugiram da ditadura do Brasil, Ana descobre ser ótima com facas, intimidar as pessoas, limpar sangue sem deixar vestígios, e receber uma boa grana com tudo isso enquanto cresce, sozinha, nas terras dos homens “civilizados”.
Até que a mudança de paradigmas chegou. A busca com suas próprias mãos pelo assassinato de Orson Welles leva ana à procura de uma razão existencial, de fato, que justifique o trabalho aqui muito bem arquitetado. A medida que ele envolve a morte das pessoas (sempre sob o intuito de fazer parecê-lo um acidente, como quando a matadora se fantasia de um monstro da ficção para dar um ataque cardíaco em seu alvo, numa noite chuvosa), a não-culpa de exterminar apenas quem não presta e fez muita gente sofrer, de repente encontra uma contradição tanto moral, quanto familiar. Cada vez mais inquieta em sua consciência pela nova missão, Ana não quer matar alguém que nunca fez nada contra o mundo, como ela mesma assume em certo momento, ao voltar atrás em seu achismo de que matar o criador de Cidadão Kane, o filme-Monalisa da história do cinema, a obra-prima das obras-primas, seria o ponto mais alto de sua carreira pós-treinamento em Cuba.
Tal constatação da jovem mulher, após vários almoços com o próprio Welles, já velho, fracassado e extremamente gordo, fantasma ambulante do grande gênio de 25 anos que já não era mais, cai por terra de forma retumbante mesmo tendo que seguir em frente com sua estratégia mortal de aniquilar o artista – tão inofensivo e interessante como o mais amável dos anciões. Soma-se a isso a questão familiar, uma vez que Ana tampouco quer seguir os passos do pai, não mais, como se a vida desse-a pelo contato com Welles a chance de rebobinar seu caminho, distanciando-a do caminho paternal daquele famoso assassino que atendia pela alcunha de Doutor Eletrochoque, algo que Ana nunca soube quando vivo, afinal tostar o cérebro de suas vítimas ainda vivas na ditadura era a especialidade daquele homem acima de quaisquer suspeitas. A fruta não cai longe da árvore, mas para Ana, antes de apodrecer, houve a oportunidade de se atingir outros horizontes.
De posse de um clima noir tão elegante e ritmado como nos melhores romances de Agatha Christie, sem deixar de lado toda uma perturbação do ser diante de seus maiores medos e dúvidas sobre seu papel no mundo dos clássicos de Edgar Allan Poe, Xerxenesky rege com F uma breve trama cujas 200 páginas se tornam hipnotizantes desde seu início. Assim, o autor injeta sombras na colorida e efervescente década de 1980 para celebrar e questionar, com toda a poética e filosofia possíveis em sua fantástica prosa, todas as formas de arte conhecidas pelo homem, mesmo aquela que por seus agentes (do caos) também deve ser reconhecida dessa forma. Um elemento em comum entre Cinema e assassinato de aluguel, então, seria, novamente, a intensidade que ambas as artes (o que é arte?) precisam ter, em níveis diferentes, para serem consumadas. Ou ainda, o sangue e o suor que delas vertem, sem contar a paixão e o ódio que muitas vezes as permeia. Welles saberia explicar melhor. Por imagens, é claro, não por palavras.
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