Crítica | What Happened, Miss Simone?
Ainda que a definição sobre a composição da arte seja delicada, há uma natural observação comum, pontuada tanto por uma análise geral quanto pela vertente crítica com base em biografias, de que parte da arte mundial foi esculpida através de sentimentos dolorosos. Um conceito simbólico que faz da tristeza um maior escopo fundamental para que artistas expurguem sentimentos pela criação, equilibrando a matéria interna com o labor de um trabalho visível.
A dor é uma das constantes de Nina Simone em sua longa carreira, cuja trajetória se destaca na biografia dirigida por Liz Garbus – a qual já dirigiu uma obra sobre Marilyn Monroe, outra figura trágica do show business – com distribuição da Nexflix. Desenvolvida em estilo documental tradicional, apoiada na trajetória temporal da cantora, a história apresenta altos e baixos dessa compositora de formação clássica cuja interpretação musical era carregada de uma intimidade intrínseca com a música. Obra indicada ao Oscar de Melhor Documentário, curiosamente concorre com outra grande cantora biografada, representada pelo médio Amy.
Nascida em 1933, Simone tinha o desejo de se tornar a primeira pianista negra de música clássica no país. Após um concerto aos quatro anos de idade, demonstrando um talento precoce, passa a estudar com duas tutoras por anos, assimilando a música clássica a qual seria fundamental em suas composições de jazz. A necessidade do trabalho a projetou em diversas casas de música interpretando canções fundamentais do jazz, o início do sucesso como intérprete.
A figura de Nina Simone é composta por contradições. Elementos apresentados na história que fortalecem sua trajetória como artista. Sua carreira se destaca logo após seu casamento, quando o marido, até então policial, se torna seu empresário. Uma relação de amor e ódio que causava desequilíbrio na cantora, apesar de ela sempre declarar seu amor. O relacionamento, assim, representava parcialmente a visão da época na qual o casamento se mantinha como uma instituição a ser seguida, mesmo que violentamente. Cobrada ao extremo para executar seu talentoso trabalho, o palco era seu momento de catarse com interpretações carregadas de sentimentalismo na voz e extrema técnica no piano.
Em 1964, quando a luta pelos direitos civis dos negros eclode, a pianista reconhece que parte de sua trajetória como artista vinha da afirmação de sua origem e raça, e se torna símbolo favorável ao movimento, compondo uma pungente canção após a morte do ativista Medgar Evers. Missisipi Godam marcava o início de um poderoso viés artístico, importante para sua época mas, devido à sua agressividade, foi responsável por afastá-la da mesma mídia que a consagrou. A brutalidade da luta pelos direitos leva-a a extremos, aliada a uma frágil psiquê que se desmonta e a faz odiar a própria arte que amava.
Simone era inimiga de si mesma sem saber, tardiamente diagnosticada com transtorno bipolar e psicose maníaco-depressiva. Somente em fase madura da vida pôde compreender que, além de sua personalidade distinta, da voz aberta para falar dos problemas e da alma capaz de transparecer em suas canções, tinha uma doença invisível. Em tratamento, restabelece seu público e aparece, pela primeira vez, em paz consigo mesma, compreendendo as pressões existentes na carreira, sua limitação devido à doença e o talento que a consagrou.
Nina viveu numa época em que o esforço artístico era fundamental para a carreira de um bom artista, sem aparato técnico, marketing ou qualquer outro artifício predominante. Bastava o talento como diferencial e uma motivação capaz de transformar a matéria do cotidiano em arte. Sua voz viveu boa parte da vida sob a redoma da dor; a música libertou-a para a eternidade.