Crítica | Sua Última Façanha
É de praxe como artistas americanos costumam vangloriar o seu país, e disso extrair para si e para o mundo belos filmes embalados em tratados sobre temas típicos da cultura nacional. Hoje, o pacote vem na forma do heroísmo mitológico que sempre remete, nas cores oriundas dos quadrinhos editoriais que esses super-seres usam, à bandeira dos EUA, notoriamente azul e vermelha. Se agora é assim, teve um antes pra servir de prelúdio a essa moda. O faroeste de Ford a Leone já serviu de referência a essa espécie de patriotismo exportado e importado que Hollywood tanto ostenta, entendendo portanto que a promoção dos ideais nacionalistas do Tio Sam se dá muito mais pelo Cinema, que pela Literatura ou até mesmo que pela Música, já que a sétima-arte tem uma capacidade maior de sedução imaginativa, oferecendo uma hipnose audiovisual mais propícia e latente à publicidade dos valores de um grande shopping center chamado Estados Unidos da América.
E é por isso mesmo que Sua Última Façanha seria o filme, como outros que não vem a calhar aqui, que de forma alguma poderia vir a faltar na filmografia desse país. Uma terra continental que integra a política de tantos outros, e se vê responsável, tal um Superman de características geopolíticas, de interferir como bem acha que deve na vida de um planeta por inteiro. E que, muito que resumidamente falando, exclama seus poderios em troca de soberania, sob a égide da democracia que vende, ou melhor, diz conferir a quem segue seus preceitos capitalistas do “ter” acima do “ser” da questão – qual seria essa, então? Uma questão de valores, é claro. O longa é a fuga de um homem de uma liberdade imposta (?!). Um brilhante tratado estadunidense, do começo ao fim, e um tanto que esquecido pelas plateias sobre a intolerância, e logo na terra das oportunidades e da democracia – mais irônico que isso, fica difícil.
Kirk Douglas é o irrefreável vaqueiro Jack Burns, um sobrenome que já deixa claro no que que a vida de Jack se baseia, ou irá se basear. Um homem avesso a qualquer tipo de modernidade mas não por isso bruto, ignorante ou violento: deixa-se prender para ajudar um amigo (Michael Kane) a escapar da prisão, mas descobre que esse, ao sair, terá muito mais a perder aqui fora. Nisso, Jack escapa sozinho, e uma perseguição frenética a cada minuto assola sua vida feito um incêndio devastador nos seus calcanhares, a partir de então, seguindo-o e à espreita do homem num cenário e ritmo perfeitos para fundir um estilo clássico e já enraizado na cultura americana com novas possibilidades tanto de se contar uma história, quanto de abordar um gênero.
Na mesma década do western spaghetti de Sergio Leone e Clint Eastwood, a obra do cineasta David Miller (não apenas a partir de seu segundo ato aventuresco) configura-se na tela como embate do novo com o velho, e na história, como um marco narrativo e estético por ser mais uma pedra moderna em cima do cadáver resistente do faroeste clássico; um bang-bang monumental que agora divide sua tela fullscreen com um helicóptero sobrevoando um peão e seu cavalo, inundando o quadro de elementos inversamente icônicos e que, antes da década de 60, eram impensáveis de se contemplar num filme dum gênero tão simbolicamente conservador aos primórdios dos EUA. É por isso que o roteiro do tumultuado e famoso escritor comunista Dalton Trumbo, o mesmo de Spartacus, merece uma análise a parte, adaptado aqui do romance do anarquista Edward Abbey.
A caça sofrida por Jack Burns, suas causas e consequências, exala semelhança e remete à perseguição que Trumbo sofreu por ser membro do Partido Comunista, bem antes dos anos 40, e aos ideais que o segundo autor defendia, afirmando que “O homem só será livre quando o último rei for enforcado nas tripas do último padre”, uma frase atribuída a muitos(as) autores(as), mas escrita originalmente por Abbey num simples jornal estudantil. Vale ressaltar ainda que, no que se refere a vida profissional de ambos os escritores, suas carreiras acharam um ótimo paralelo ideológico num filme que representa e faz refletir, cena após cena, a moralidade da anarquia e da violência nacionalista, e a tendência tão norte-americana de perseguir (aqui, literalmente) quem não segue as suas regras, seja o alvo das ações um simples homem e seu cavalo, seja países inteiros que não concordam, obedientes, com suas demagógicas imposições de liberdade (?!).
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