Crítica | Snowden: Herói ou Traidor
2016 foi um ano particularmente trágico no mundo e uma das surpresas mais negativas surgiu com a eleição de Donald Trump à presidência dos Estados Unidos. Por tudo que defende, o futuro comandante da nação mais poderosa do planeta representa não só a possibilidade de uma escalada ainda maior do processo de desequilíbrio econômico-social no mundo, mas sobretudo da expansão do cerceamento das liberdades individuais. E é justamente nesse contexto que Snowden: Herói ou Traidor, novo filme de Oliver Stone sobre o ex-funcionário da CIA e da NSA, se torna absolutamente relevante e terrivelmente assustador.
Escrito pelo próprio Stone em parceira com Kieran Fitzgerald a partir dos livros Os Arquivos Snowden e Time of the Octopus (ainda sem tradução no Brasil), Snowden é um filme que resgata tudo aquilo que se espera de seu diretor. Com forte viés político, como não poderia deixar de ser, a produção constrói um thriller digno de John Le Carré para mostrar os eventos que culminaram na divulgação de documentos secretos da NSA em junho de 2013 ao mesmo tempo em que nos apresenta quem de fato é Edward Snowden, o homem responsável pelo vazamento de informações que mancharam irremediavelmente a administração de Barack Obama.
Interpretado por um Joseph Gordon-Levitt num trabalho que impressiona pelas sutilezas com que emula o personagem título quase à perfeição (quem viu o documentário ganhador do Oscar 2015, Citizenfour, vai notar como o ator ficou realmente parecido com Snowden tanto na postura física quanto no tom de voz), o ex-CIA e NSA se revela uma figura fascinante à medida em que vemos a trajetória da transformação do homem que acreditava plenamente que a “América” é o melhor lugar do mundo e confiava em seus governantes – achando absurdo, por exemplo, quem criticava o presidente – àquele que resolveu expor o maior segredo destes para o mundo.
O filme estrutura e divide sua narrativa basicamente entre duas coisas: os bastidores da longa entrevista que Snowden deu à documentarista Laura Poitras (Melissa Leo) e aos jornalistas Glenn Greenwald (Zachary Quinto) e Ewen MacAskill (Tom Wilkinson) em Hong Kong em junho de 2013 e os flashbacks que trazem recortes da carreira de Snowden evidenciando alguns de seus feitos em posições de destaque tanto na CIA quanto na NSA (que inclusive provam que ele não era um reles analista terceirizado como o governo americano tentou pintá-lo depois) além de sua própria vida pessoal quando mostra como seu relacionamento com a progressista Lindsay Mills (Shailene Woodley) influenciou a mudança de perspectiva que ele experimentou.
A propósito, ainda que tenha o thriller político no seu DNA, Snowden, por vezes, ganha ares de filme de terror quando evidencia quão ameaçadoras são as ferramentas que a NSA dispunha (e provavelmente continua dispondo) para monitorar cidadãos mundo afora que sequer sabem que estão sendo vigiados das formas mais vis. É o choque de realidade que o filme provoca, aliás, que o transforma numa obra tão importante, já que expõe com todas as letras que o terrorismo foi a mera desculpa que o governo americano usou para obter vantagens em negociações econômicas com outros países através do monitoramento secreto de outros governos e empresas estrangeiras.
Expositivo na medida certa, Snowden traz também o importante alerta sobre como é fundamental ter uma mídia imparcial genuinamente interessada em expor fatos de interesse público doa a quem doer em oposição àquela que defende interesses particulares omitindo ou manipulando informações. Nesse contexto, aliás, há uma sequência já no terceiro ato do filme que deveria fazer muito paneleiro aqui no Brasil ficar envergonhado ou no mínimo pensando como sou trouxa por ter acreditado em tudo que os JNs da vida me disseram por meses a fio sobre o que estava acontecendo no país.
E se isso, por si só, não te convencer da relevância que um filme como Snowden deveria ter, o momento político atual dos Estados Unidos, aliado a uma fala de seu personagem título já na parte final da produção sobre os riscos de estarmos nos aproximando do ponto em que poderemos perder totalmente nossa liberdade e direito à privacidade em nome da pretensa segurança devem fazer o serviço.
–