Crítica | Batman vs Superman: A Origem da Justiça (2)
“The Red Capes are Comming”. A frase de Lex Luthor (Jesse Eisenberg) que se fez famosa no trailer de Batman vs Superman: A Origem da Justiça remete ao herói da independência dos EUA, Paul Revere — que também virou música na voz de Johnny Cash — atuando como mensageiro nas batalhas de Lexington e Concord. Ele chegou a Boston em seu cavalo gritando esta frase em referência aos soldados ingleses que usavam capas vermelhas.
E é com a reação da humanidade à vinda de um força maior coberta por capa vermelha que a trama se move por boa parte do primeiro ato. O surgimento de uma espécie alienígena representa duas grandes questões da modernidade: a retirada do ser humano do pedestal de ser mais poderoso do universo, e a materialização de sua relação ambígua entre amor e temor que boa parte das religiões têm com relação às divindades. Se na Antiguidade a existência de uma força maior era um fato, hoje a fé é desmotivada e se mostra enfraquecida, como relatou Nietzsche, indicando que a fé tornou-se secundária na vida moderna, dando origem ao que ele chamou de Super-Homem (Ubermensch – Além do Homem) capaz de controlar o mundo à sua volta e não mais um joguete das fatalidades.
Ainda assim, porém, existe a ideia de que nossos erros são a raiz da raiva de forças as quais não alcançamos total controle, tal é com as forças da natureza. Essa ideia preenche a relação de crime e castigo, amor através do temor e fidelidade forçada, conceitos essenciais para entender por que a invasão de uma divindade causa reações tão paradoxais à população do filme, temendo um deus que perde a calma caso alguém não se ajoelhe para pedir perdão.
O medo, a febre que cresce nos corações são o motor de uma guerra, seja ela forjada em palavras ou com fogo, e é desta característica que Lex Luthor se aproveita para trabalhar sua megalomania caótica de quem não apenas desacredita e confronta, mas pretende ser o deus de seu tempo. Sua amargura é descrita numa citação breve do argumento da contradição dos fatos do filósofo David Hume para a inexistência de um deus. Porém sua maquinação não é racional como aquela da filosofia, mas sim solitária e apaixonada a ponto de impedi-lo de se contentar em matar apenas o deus metafórico e tornar-se senhor de si. O surgimento de um verdadeiro deus não se traduz para ele como uma afronta ou temor, mas na oportunidade de vingança que vai além das ruminações de quem espera respostas filosóficas. Tudo isso relaciona-se com sua performance física e verbal ao trazer um pouco de outras encarnações deste que é um dos maiores vilões dos quadrinhos, mostrando-se leve, sagaz e manipulador ao retratar o yuppie moderno da era da informação em toda sua vaidade.
Nenhum pecado será perdoado. E é com este mantra enraizado em seus traumas que a orfandade trouxe que Batman/Bruce Wayne (Ben Affleck) e Superman/Clark Kent (Henry Cavill) interagem para criar os dois lados de uma mesma moeda. A vontade e a necessidade de fazer algo frente ao que se entende como errado são uma arma poderosa, porém polissêmica, e por isso capazes de produzir não só grandes feitos como também grandes tragédias, tal qual religiões, em que um mesmo conceito é capaz de tanto fazer alguém dar a vida em prol de um ideal quanto é capaz de dar as armas para dizimá-la. Para ligar estes dois personagens, o truque foi usar uma coincidência dos quadrinhos para representar os amores mais profundos dos meninos (apesar de a Mulher-Maravilha representar muito bem o gilrpower e mostrar-se superior e mais saiba que qualquer outra pessoa da trama, este é um filme que fala essencialmente aos meninos) e ligá-los emocionalmente.
As duas grandes surpresas do filme ficam na performance e representação que Affleck trouxe ao Homem-Morcego, e Gal Gadot como Mulher-Maravilha, todavia o casting é irrepreensível. Como seus alteregos, a coisa funciona igualmente bem. O Batman se mostra brutal, poderoso e amedrontador em sua performance física exacerbando violência e em sua postura e fala que jamais recuam, deixando claro que sua principal gadget é o medo que provoca. Uma personificação exemplar que relaciona o figurino e o forte apelo à fantasia mostrando um Batman capaz de feitos improváveis, mas não necessariamente impossíveis.
A Mulher-Maravilha é especialmente bem tratada, tanto por sua música-tema, que é mais impactante e carismática que a de seus companheiros de cena, quanto pela cinematografia (não por acaso é colocada no centro da Trindade), tratando de mostrar uma heroína inabalável e divina na essência do termo. Ela demonstra em suas linhas de diálogos já ter passado pelos sofrimentos que hoje os demais heróis passam. Mesmas dúvidas, mesmas tristezas, mesmas perdas, mas com a sabedoria de que não há recompensas em viver acima das nuvens, ciente de que a corrupção do poder sempre chega.
O roteiro é coeso, mesmo com a abertura para as loucuras temporais que a DC trabalha nos quadrinhos, e possui todas as pontas costuradas pelos sempre talentosos Chris Terrio (Argo) e David Goyer, que se utilizaram de ao menos duas grandes histórias clássicas dos heróis-título. Apesar desta competência, faltam pausas para assimilar e deixar respirar certas ideias do filme e assim algumas conclusões podem soar falsas ou apressadas. Falta a mesma contemplação para justificar a ação, que, apesar de ser intensa e poderosa, conta mais com a pose do que com movimentos ao capturar muito da estética e linguagem narrativa dos quadrinhos. O recurso que nas mãos de outro diretor poderia traduzir-se em cenários enfadonhos, é bem aproveitado por Zack Snyder, o qual entende que o que há de especial na linguagem visual dos quadrinhos é justamente o preenchimento entre um quadro e o outro exigido do público, e por isso produz cenas que, independente da apreciação do todo, funcionam por si só.
Ainda assim, o ritmo traz algumas perdas para a narrativa e à estrutura dos atos, que iniciam e terminam a ação em períodos incomuns nos demais filmes de super-heróis (tanto da Marvel quanto da Trilogia Nolan), o que afeta a noção de tempo do filme, desregulando as emoções sobre os acontecimentos e prejudicando a entrega. Ao decidir emocionar pela fantasia de se observar a trindade dos quadrinhos agora em carne e osso e pelo jogo esquemático e inteligente do roteiro, a direção acaba optando também por evitar emoções mais profundas, formando um filme rebuscado e apaixonado, mas carente de amor.
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Texto de autoria de Marcos Paulo Oliveira.