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  • Crítica | S1m0ne

    Crítica | S1m0ne

    O início de S1m0ne, segundo filme do diretor Andrew Niccol se dá com cenas naturais, acompanhadas de uma música incidental belíssima, composta por Carter Burwell. Não demora a aparecer o obsessivo Viktor Taransky, um produtor comercial pilhado e sempre estressado vivido por Al Pacino, que em um primeiro momento, tenta controlar uma espécie de transtorno ligado ao TOC, separando jujubas e delicados em uma vasilha sem motivo ou razão aparente alguma. Dentro de seus pequenos dramas, ele tem que também lidar com o ego de artistas mais renomados, entre elas Nicola Anders (Winona Ryder), uma super modelo que desiste da campanha que ele faz.

    Viktor é um homem genioso, já foi nomeado ao Oscar pela direção de dois curta metragens seus, e o roteiro de Niccol resolve todas essas referencias em um espaço curto de tempo, entre a exibição de um dos cortes da propaganda e uma conversa entre ele e sua colega de produção, Elaine Christian (Catherine Keener) e é nesse ponto que ele percebe o fundo do poço, sendo despedido após mais um fracasso em sua carreira, mas apesar da melancolia, ele segue tentando parecer altivo.

    Niccol utiliza muito bem as cores. A desculpa de passear por estúdios propicia que os tons esverdeados e átonos sejam justificados como uma alternativa lógica e essa tonalidade que lembra o movimento de vômito ajuda a compor todo o quadro tragicômico de desespero e de aceitação que o protagonista tem junto a Hank Aleno (Elias Koteas). Um homem sem alternativas é mais suscetível a trabalhos de gosto e origem duvidosos.

    Há toda uma aura fantasiosa por trás do que ocorre após a morte de Aleno, o realizador recebe uma encomenda misteriosa, abre no computador, vê uma figura feminina feita por Rachel Roberts, e então chega com o filme de Valerie pronto, deslumbrante. Os momentos de Pacino aqui são de uma entrega absurda, ele faz o experiente e inseguro artista. A cena em que ele está refletindo desesperado no banheiro emula bem a jornada de conhecimento da causa do Mr. Anderson em Matrix, parece até que a tomada foi feita pelas irmãs Watchowski de tão fidedigna que está a aura, e isso não é um demérito para Niccol, até porque não se sabe se sua intenção foi referenciar isso. De todo modo, o exercício se assemelha muito a especialidade de Quentin Tarantino, de pegar uma tomada X de um diretor clássico, mudando seu significado.

    O conceito de Complexo de Frankenstein que o escritor Isaac Asimov tanto criticava dá conta do uso da robótica como algo necessariamente vil, e o que se vê aqui com a inteligência artificial denominada Simone é bem a gênese do que poderia ser isso, levando em conta inclusive o pontapé da ganância humana como estopim para essa possível revolta, embora a intenção do filme passe longe disso. Aqui se fala do vazio da alma humana, da  falta de escrúpulos e do uso da imagem de terceiros visando lucro, inclusive da parte dos que se julgam explorados e subestimados. As ações de Viktor não são livres de vis intenções, ou de desonestidades, ele surfa bastante nessas ondas e lucra com tudo isso.

    Pacino faz esse personagem cair no pecado que outro de seus personagens famosos da época provocava: a vaidade. Em O Advogado do Diabo, o ator fazia o Diabo, e seduzia as pessoas através de  seu ego. A falha de Taransky é exatamente essa, a tentativa de esconder Simone dos holofotes só aumenta a expectativa em torno dela, e faz até seu desejo de ser encarado como o único com méritos positivos em seus filmes cair em um mar de irrelevância. Todos só querem saber da atriz, mesmo que ela seja  um fantoche nas mãos digitais de Viktor.

    A dúvida que fica é, quem domina quem, pois as poucos, o personagem que era apenas um contador de historias se torna Relações Publicas, montador, ator, tudo para emular a atriz perfeita, que não tem escolhas próprias. Aos poucos, ele se torna refém de suas mentiras, e o quadro evolui tanto que se torna algo mitômano, a segunda hora de filme mostra todo o malabarismo do personagem masculino tentando não só emular o comportamento comum de uma mulher estrela, mas também toda sorte de eventos pitorescos para que ele possa ter uma vida amorosa saudável, ou algo que o valha, e não importa o que ela faça, ou como haja, há sempre quem a defenda e o comentário sobre a sociedade do espetáculo é muito mordaz e certeiro.

    Ao contrario do que os cartazes e material promocional de S1m0ne fazia acreditar que o personagem de Pacino se apaixonaria pela figura cibernética, mas isso não ocorre de modo carnal, e sim como fonte de uma fama que ele jamais teve, e que sempre jogou como merecida a si. Se livrar dela provou-se algo praticamente impossível e o final surpreendente fecha bem a historia, mostrando que o pragmatismo e vontade de manter o status quo poderia ser maior que a necessidade de uma lição moral, e Niccol sabe conduzir bem todas as questões envolvendo vaidade, luxuria e cobiça presentes na vida e clara na trama que pensou para este longa.

  • Crítica | Zodíaco

    Crítica | Zodíaco

    Zodiaco - poster

    Assassinos seriais na história dos EUA existem aos montes. Cada um mais complexo do que o outro. O século XX, por ter sido o século da massificação (inclusive da mídia), trouxe para a população a espetacularização de eventos que antes eram confinados a círculos restritos. Se antes uma série de assassinatos em uma comunidade rural (como retratado no excelente A Fita Branca) ficava restrita a ela, no país da classe média e da informação, a produção de notícias e a reprodução de assassinos, que tinham vontade de aparecer e passar uma mensagem, também cresceram exponencialmente. Junto a esses casos, cresceram também os filmes do gênero, que tentavam reconstruir o passo a passo da investigação policial no percalço do assassino, às vezes tentando compreender o que havia por trás de pessoas tão perturbadas a ponto de cometerem tais atos.

    Dentro desse contexto, um dos casos mais curiosos foi do assassino que se auto intitulou “Zodíaco” e que cometeu seus crimes nos EUA entre as décadas de 60 e 70. O que torna seu caso tão emblemático é, além do assassino usar códigos publicados em jornais para chamar a atenção e ver se alguém conseguiria capturá-lo através deles, o fato de ele nunca ter sido pego. Dentro desse frenesi de teorias a respeito de quem fora esse assassino e as razões por trás de seus atos, David Fincher adaptou o livro de Robert Graysmith, cartunista, jornalista e escritor que investigou a fundo o caso e que no filme é interpretado por Jake Gyllenhaal. Também no  San Francisco Chronicle trabalhou com Graysmith o jornalista Paul Avery (Robert Downey Jr.). No comando da investigação policial estavam os policiais locais David Toschi (Mark Ruffalo) e William Armstrong (Anthony Edwards), que são chamados após um assassinato de um taxista, mas cujas evidências apontam para algo mais complexo do que parece.

    Com aproximadamente três horas de duração, Zodíaco consegue entreter o espectador, que é preso nessa cadeia de acontecimentos e descobertas que vão se desdobrando, ao mesmo tempo que contradições aparecem, criando-se dúvidas enquanto surgem certezas. A história possui três atos distintos, onde os dois primeiros focalizam a evolução de Zodíaco como assassino e instigando as autoridades a investigá-lo, à medida que a dupla de policiais Toschi e Armstrong segue em sua busca, lidando com toda a dificuldade do sistema legal para isso. O terceiro ato volta-se para a jornada pessoal de Graysmith e sua obsessão em descobrir a identidade do assassino, o que terá um alto custo em sua vida pessoal.

    Robert Graysmith é um tímido e introvertido cartunista do San Francisco Chronicle e que adora quebra-cabeças. Quando as primeiras cartas de Zodíaco são recebidas pelos principais jornais da Califórnia, ele tenta compreender as pistas e o fenômeno por trás do assassino, mas é tratado com desdém por seus colegas. A novidade e complexidade do caso são tantas que os órgãos policiais, a imprensa e grande parte da sociedade não conseguem compreender o que está acontecendo, o que irá contribuir para o assassino permanecer solto por todo este tempo. A falta de diálogo entre as divisões, a intensa burocracia e a guerra de egos são fatores determinantes dentro da investigação e acabam por todo o instante a atrapalhá-la.

    Após, atrair a curiosidade de Avery, Graysmith começa a investigar, em companhia dele, algumas das pistas deixadas pelo assassino, tentando encontrar um padrão e, assim, tornar mais fácil sua identificação. Porém, nada se encaixa. Suas vítimas mudam, assim como a hora, o dia e o tipo dos assassinatos cometidos, para o desespero do metódico desenhista. Tamanha dificuldade acabará por levar Avery à exaustão mental, e, após ser ameaçado de morte por Zodíaco, o personagem acaba por se retrair completamente da sociedade, tornando-se jornalista de publicações pequenas.

    Passam-se anos e a dupla de policiais, Toschi e Armstrong, também toma rumos diferentes. Enquanto Toschi permanece obcecado com o caso e sofrendo pressões internas, Armstrong decide deixar tudo de lado e pede transferência para executar trabalhos internos, para a decepção do parceiro. Passada quase uma década após o aparecimento de Zodíaco, Toschi e Graysmith se unem extraoficialmente para tentar aparar arestas e dar um fechamento à investigação de forma definitiva, causando a quase completa exaustão mental de ambos, especialmente de Graysmith.

    Apesar de o final do filme não se resolver por completo, ao deixar o espectador com a mesma sensação que o público tivera ao acompanhar o caso (já que ele nunca foi resolvido), toda a trajetória de investigação é feita de forma meticulosa, característica marcante do cinema de Fincher. A reconstituição material da época, desde os carros, as posições dos corpos, os penteados e roupas das vítimas, as notícias de jornal e TV, além de todo o frenesi causado por Zodíaco na época, contribuem para dar ao filme uma aura quase documental, a ponto de fazer com que o espectador se sinta na pele de Graysmith, querendo saber cada vez mais sobre Zodíaco. Após ver o filme, uma busca no Google pela história do assassino e dos personagens se torna irresistível. Também se torna quase que necessário assistir à obra mais de uma vez, pois, a cada revisão, conseguimos perceber uma nova camada dentro daquele mundo e da investigação. Sentimo-nos mais próximos de saber a verdade, lado a lado dos personagens e suas teorias.

    Mais do que um filme sobre um serial-killer, Zodíaco mexe fundo no imaginário coletivo de uma humanidade que havia acabado de entrar em uma sociedade de consumo e informação de massa. A avalanche de assassinos seriais que os EUA enfrentariam nesse período não é mera coincidência, pois todos nós somos atraídos pelo que há de mais sombrio na nossa natureza. O comportamento coletivo em cima desse fenômeno raramente é racional; a mídia o usou largamente e ainda o usa para lucrar em cima de acontecimentos como esses. A sociedade dos EUA, com sua obsessão por armas, violência e a retidão moral, consegue produzir fenômenos únicos que suscitam diversas análises e entendimentos. O serial-killer se torna, então, um desses fenômenos dentro da cultura pop. Filmes como Zodíaco, ao invés de sensacionalizar o evento, nos ajudam a compreendê-lo de maneira sóbria e séria. Em uma época de tamanha passionalidade, tais obras são sempre bem-vindas.

    Texto de autoria de Fábio Z. Candioto.

  • Review | The Killing

    Review | The Killing

    the-killingA série canadense-americana de quatro temporadas, produzida pela Fox e distribuída pela AMC, é um remake da bem-sucedida série dinamarquesa Forbrydelsen, de 2007. A série se passa em Seattle e acompanha a investigação do assassinato da adolescente Rosie Larsen (Katie Findlay). Cada episódio é, aproximadamente, um dia na investigação conduzida por Sarah Linden (Mireille Enos) e seu novo parceiro Stephen Holder (Joel Kinnaman).

    O roteiro se apoia em alguns clichês que, mesmo sendo clichês, ainda funcionam bem por estarem cuidadosamente estruturados:

    O investigador que está prestes a abandonar seu cargo, trocando-o por uma nova vida e que se vê “obrigado” a ficar e resolver um último caso. Na série, Linden vai se mudar para outra cidade com o filho e seu futuro marido, mas vê-se envolvida demais com a história da vítima e protela a viagem indefinidamente.

    Uma parceria não desejada – e não planejada – que desagrada o protagonista, ao menos no início. Na série, Holder chega à divisão de Homicídios, vindo da divisão de Narcóticos, para ocupar a vaga deixada por Linden. Como ela vai ficando, decidida a resolver o caso, acabam se tornando parceiros.

    Parceiros com personalidades diferentes – este é um clássico, quase obrigatório em filmes com duplas. Na série, enquanto Linden é a veterana mal-humorada, calada e durona, Holder é o recém-chegado falastrão, descolado e com ginga de malandro. Ele fuma feito uma chaminé; ela largou o vício e passa o tempo todo mascando chicletes com nicotina. Ela tem família, mas a negligencia em detrimento das investigações; ele está sozinho, tentando resgatar a confiança da irmã e o convívio com o sobrinho. E mais um rol de características que se opõem e, ao mesmo tempo, se completam.

    Há alguns detalhes que fazem lembrar bastante Twin Peaks. Além da referência óbvia, já que a premissa de ambas é o assassinato de uma jovem, aparentemente sem motivos. Troca-se “Quem matou Laura Palmer?” por “Quem matou Rosie Larsen?”. Mas não é apenas isso. A investigação, encontrando pistas falsas que levam a falsas suspeitas, apesar de todos os envolvidos serem culpados de alguma coisa – não exatamente do crime sendo investigado. As revelações sobre as atividades extra-curriculares da adolescente, totalmente desconhecidas dos familiares. Some-se a isso o fato de que as suspeitas apontam para um cassino em território indígena, de que uma das pistas vem de um reflexo num vídeo, de que há uma rede de prostituição que permeia a trama. Mas diferente da obra de David Lynch, esta não tem um pé no fantástico, nem se vale do nonsense para envolver o público.

    A primeira temporada cobre as duas primeiras semanas da investigação. E para desgosto dos espectadores, termina sem ter resolvido efetivamente o caso. Na verdade, há uma suspeita muito forte sobre um dos personagens dada por uma prova cuja autenticidade é questionada nos últimos minutos do episódio. A segunda temporada abarca mais duas semanas de investigação, em que, além de caçar pistas que apontem o verdadeiro assassino, Linden e Holder vêem-se enredados em tramas cada vez mais complexas que colocam em risco inclusive sua confiança mútua, além de questionar a integridade da força policial de Seattle.

    A terceira temporada reaviva um caso do passado, resolvido por Linden e seu ex-parceiro – e ex-amante – James Skinner (Elias Koteas), quando um assassinato apresenta várias coincidências no modus operandi com esse outro. As investigações fazem Linden mergulhar no passado e mexer em “cicatrizes” mal fechadas. Com o roteiro um pouco mais enxuto que as duas primeiras temporadas, talvez com ritmo um pouco lento no início para alguns espectadores, tem um arco dramático cujo desfecho é de tirar o fôlego. O final é daqueles que dá vontade de “voltar a fita” e rever para se certificar de que foi aquilo mesmo que ocorreu. Há outros, mas esse é o “momento PQP” mais significante de toda a série.

    A série que, para desagrado do público, havia sido cancelada após o término da terceira temporada, voltou para uma quarta temporada graças à Netflix, que solicitou que fosse dado ao público um desfecho decente numa temporada de encerramento. Lógico que não foi apenas boa vontade da empresa. A Netflix notou o desempenho que a série vinha tendo no chamado binge watching (mais conhecido como maratona de série), acreditou nesse potencial e bancou a quarta temporada. Nela, enquanto Linden e Holder lidam com as consequências dos atos do final da terceira temporada, investigam o assassinato de toda uma família em que o filho mais velho, principal suspeito, foi baleado na cabeça e perdeu a memória do acontecido.

    É lógico que a resolução dos crimes é importante, mas vale notar que nem por isso as tramas secundárias são deixadas de lado. Mesmo que eventualmente alguns arcos menores possam ser classificados como fillers (no popular, “encheção de linguiça”), pouco agregando ao arco narrativo principal – principalmente na segunda temporada – , é inegável o cuidado no seu desenvolvimento. Mais incrível foi a forma como pequenos detalhes da primeira temporada foram resgatados de modo a se encaixarem nos eventos da terceira. A convergência dos arcos narrativos foi bastante consistente, não deixando pontas soltas nem perguntas sem respostas.

    Mas de nada adianta uma boa história, se os personagens não cativam o público. E a construção dos personagens é mais um trunfo da série. Nenhum deles é raso, uni ou bidimensional. Todos são tridimensionais e complexos como qualquer pessoa. E como qualquer pessoa, o espectador vai conhecendo cada um deles aos poucos, reunindo informações que vão sendo dadas com parcimônia. E por se ter tão poucas informações, inicialmente nem é assim tão fácil se identificar com Linden ou Holder. Não há flashbacks lacrimosos, explicando essa ou aquela motivação do personagem, nem mesmo atos altruístas ou heroicos no intuito de cativar o público imediatamente. Não há qualquer didatismo, o roteiro confia que o espectador tem capacidade de pensar suficiente para juntar os pontos sozinho.

    Emendando, não bastam bons personagens se os atores não tiverem boas performances. E Enos e Kinnaman formam uma das melhores duplas policiais dos últimos anos. Não dá para saber o quanto estava no roteiro e o quanto se deve aos dois, mas a interação entre eles vai além do contraste entre duas personalidades fortes e distintas. Certamente, o sorrisinho cínico que Linden dá para quase tudo foi uma adição muito bem-sucedida feita por Enos, assim como a fala malemolente de Holder. Mas além dos protagonistas, vale destacar o vilão da terceira temporada, Ray Seward (Peter Sarsgaard). Sarsgaard representa com perfeição a ambiguidade do personagem que, mesmo condenado à morte, ainda destila sua verve violenta sem poupar ninguém.

    Num primeiro olhar, a série pode parecer depressiva, principalmente por ser ambientada num local em que sempre chove, o que contribui para o clima mais lúgubre. Mas, ao final, recompensa o espectador por privilegiar sua inteligência, entregando uma season finale que faz jus ao restante da série.

    Texto de autoria de Cristine Tellier.