Resenha | Leite Derramado – Chico Buarque
“A curva é o gesto de um rio.”
Eis que Chico Buarque retorna com seu quarto livro, Leite Derramado. Uma história que traça todo o panorama do Brasil do último século, sob o ponto de vista de Eulálio Montenegro D’Assumpção, um senhor já com seus 100 anos de idade, que em seu leito de morte, relembra da melhor maneira possível – devido a sua memória já um tanto envelhecida – trechos de sua vida, relembrando em alguns momentos “Cem Anos de Solidão”, de Gabriel Garcia Marquez.
“…A memória é deveras um pandemônio, mas está tudo lá dentro, depois de fuçar um pouco o dono é capaz de encontrar todas as coisas”
Chico cria uma narrativa sem ordem cronológica, porém, de maneira genial. É possível ir montando esse quebra-cabeça da história da nossa personagem de acordo com suas narrativas, e assim contextualizando com os costumes e valores do último século, além de referências a quebra da bolsa de NY, a Era Vargas, a ascensão nazista e a Segunda Guerra Mundial, a própria ditadura militar, entre outros acontecimentos.
“…Meu avô foi um figurão do Império, grão-maçom e abolicionista radical, queria mandar todos os pretos brasileiros de volta para a África, mas não deu certo”
Eulálio, hoje já decadente, foi pertencente de uma família aristocrática. Seu trisavô chegou ao Brasil na comitiva da família real portuguesa, já seu bisavô foi o grande Barão dos Arcos, seu avô esteve sempre ao lado de D. Pedro II, enquanto seu pai era um senador da República Velha. Com o decorrer dos anos, acompanhamos a decadência da elite carioca, que vai se adaptando às constantes mudanças sociais, e tendo seus valores alterados. A contextualização de “Leite Derramado” está em cada personagem, local e modos de vida que somos apresentados, onde tomamos para si um pouco daquelas tradições, costumes e falas de cada época.
“… E qualquer coisa que eu me recorde agora, vai doer, a memória é uma vasta ferida!”
Em sua história, Chico delimita bem o aspecto social de cada gestão presidencial e escancara a questão educacional brasileira, que sempre foi privilégio de uma pequena minoria. Os padrões morais dessa minoria sempre foram conservadores e dotados de preconceitos raciais, mostrando que esse sistema nunca preparou a formação de uma sociedade mais ética e desenvolvida.
“… Era como se a cada passo eu me rasgasse um pouco, por que minha pele tinha ficado presa naquela mulher.”
Acima disso tudo, Leite Derramado é uma grande história de amor mal resolvida e acabada que atravessa os anos. Eulálio relembra diversas vezes da mulher, Matilde, a mulata por quem se apaixonou durante uma missa na Igreja da Candelária. Chico está entre os poucos autores que sabem descrever o amor poético, que se dá como parceiro, que não se importa em revelar seus sentimentos, sejam eles repletos de fracassos, e isso está ao lado de Eulálio em seu leito de morte durante todo o livro. A busca pelo amor perdido, pungente.
“…Com o tempo aprendi que o ciúme é um sentimento para proclamar de peito aberto, no instante mesmo de sua origem. Porque ao nascer, ele é realmente um sentimento cortês, deve ser logo oferecido à mulher como uma rosa. Senão, no instante seguinte ele se fecha em repolho, e dentro dele todo o mal fermenta. O ciúme é então a espécie mais introvertida das invejas, e mordendo-se todo, põe nos outros a culpa de sua feiúra.”
Leite Derramado é bem menos pretensioso que os livros anteriores de Chico, tendo uma forma narrativa agradável e simples de ser consumida, mesclando trechos divertidos e trágicos ao mesmo tempo. Uma leitura intensa, com personagens falhos, mesquinhos e egoístas, como todos somos de verdade. Além de contar ainda com toda ambientação do último século, criando um Rio de Janeiro palpável, quase real para àqueles que lêem, trazendo consigo todo aspecto histórico da época. Acima disso tudo, Leite Derramado é uma história que lhe fará refletir por muito tempo.
“… Mas se com a idade a gente dá para repetir certas histórias, não é por demência senil é porque certas histórias não param de acontecer em nós até o fim da nossa vida!”