Tag: Leandra Leal

  • Crítica | Bingo: O Rei das Manhãs

    Crítica | Bingo: O Rei das Manhãs

    Cinebiografia é um nicho do cinema complicado de ser realizado, uma vez que normalmente se tem um receio de incomodar o biografado, quando o mesmo ainda está vivo, ou depreciar sua memória quando ele já é falecido. Bingo: O Rei das Manhãs, de Daniel Rezende, se propunha ser uma comédia dramática ácida, e ele até se apresenta assim em seu início, mas o tom do longa muda ao longo de seu desenvolvimento.

    Rezende se tornou celebridade graças ao seu trabalho de edição não só no Brasil – com Cidade de Deus e Tropa de Elite – mas também no exterior, em 360, Diários de Motocicleta e Árvore da Vida. Bingo é o primeiro longa que dirige e desde a primeira cena em que o protagonista (Vladimir Brichta) aparece, se nota um enorme apuro visual e ímpeto de se contar uma história que glamourosa. O herói da jornada é Augusto Mendes, um ator que vem de uma família de artistas e tem a ambição de se tornar uma estrela das telenovelas. A realidade que lhe compreende envolve a realização de pornochanchadas, onde o que mais aparece é sua bunda e não seu talento, e é a partir dessa exposição que o personagem começa a traçar seus planos rumo ao estrelato.

    O personagem de Brichta é recusado em alguns testes e decide rumar sua vida em outra direção, para uma rede de televisão onde teria mais visibilidade. Sempre levando seu filho Gabriel (Cauã Martins) junto, o sujeito acaba por se testar para o papel de Bingo, um palhaço que é sucesso em franquia americana, podendo enfim fazer algo que agradaria seu filho e daria chance a ele de brilhar como a estrela que sempre sonhou.

    Nesse meio tempo, é mostrada uma vida de excessos, com uso livre de drogas e álcool, e claro, tentativas mil de galantear toda mulher que passa à sua frente, incluindo aí a diretora da atração das manhãs, Lúcia (Leandra Leal), uma mulher religiosa e decidida, que não se permite seduzir facilmente. A questão maior é que quase todos os personagens usam pseudônimos, obviamente para evitar processos, mas a trajetória do palhaço/ator é ainda assim muito fiel a biografia de Arlindo Barreto, o Bozo em que se baseou o filme de Rezende, com direito até a aproximação religiosa de Barreto.

    Outro problema do texto é o excesso de tempo dedicado a trama de pai e filho. Quando o restante da história de altos e baixos de Arlindo/Augusto parece engrenar, surge mais uma vez a trama boba e óbvia do menino que se sente solitário por seu pai não dedicar todo tempo que gostaria a ele. Há uma exposição do uso de drogas e entorpecentes por parte do protagonista, mas claramente se nota uma exploração comedida do drama, que deve ter sido suavizado como parte do pedido de Barreto, que somente permitiu que sua história ocorresse caso no final, houvesse a exposição de sua conversão ao evangelho.

    Mesmo com problemas relacionados ao modo de contar sua história, Rezende concebe um filme interessante e tocante. A sequência em que o protagonista se enxerga na televisão próxima ao final é de uma beleza sem tamanho e de uma sensibilidade igualmente inspirada. Bingo: O Rei das Manhãs é repleto de momentos inspirados e poéticos, e mesmo ao seu final, com a já inspirada conversão de Augusto, ainda se foca em uma outra faceta do personagem trazido a tela, que é o amor e a obsessão pelos palcos e pelos holofotes.

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  • Crítica | Zuzu Angel

    Crítica | Zuzu Angel

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    A trilha sonora de Zuzu Angel começa com a eletrizante música Dê Um Rolê dos Novos Baianos, interpretada por Pedro Luís e a Parede junto a Roberta Sá. Após uma apresentação enérgica dos créditos iniciais, o filme de Sergio Rezende já se insere no escopo novelístico típico do longa. O drama baseado na história real da personagem título mostra uma mulher da elite brasileira que vê seu filho sendo capturado pelos militares.

    A estilista de classe média goza de uma influência grande da sociedade naquela época. Os detalhes de toda a questão envolvendo ela e seu filho Stuart Angel (Daniel Oliveira) são interessantes e um bom retrato dos martírios que a ditadura causava em seus opositores, mas fora alguns poucos momentos, a abordagem do filme é sensacionalista e pasteurizada, lembrando muito com Olga, de Jayme Monjardim outro filme que fez sucesso comercial em tempos recentes.

    As ligações entre Stuart e Carlos Lamarca fizeram com que Rezende trouxesse novamente Paulo Betti para representar o guerrilheiro, como ele havia feito com o filme Lamarca de 1994. É curioso porque o escopo de realidade forçada é reprisada neste filme, ainda que seja relativizada pela modernidade com que é conduzido o cinema. Quase todas as interações são extremamente artificiais e feitas sob uma ótica com linguagem bem mais televisiva do que cinematográfica.

    Patrícia Pillar tem um bom desempenho, como é esperado, mas a irrealidade do roteiro e da condução comprometem inclusive seu trabalho. As situações em que é posta com Stuart, seja na infância ou juventude dele são quase sempre exibidas de uma maneira forçada e nada natural. O filme carece de verossimilhança ou de qualquer intervenção mais enérgica por parte de seu realizador.

    Apesar de tratar um tema complicado o modo como o filme é realizado é bastante desequilibrado, confundindo momentos leves com pesados e registrando as torturas com uma complicada estilização, quase glamourizando os momentos de sofrimento. Ao final da exibição, Zuzu Angel soa pueril e até oportunista, por explorar um tema histórico em um um roteiro engessado, que suaviza uma história forte apresentando-a como se fosse algo genérico, apesar de tentar prestar reverências e homenagens.

  • Crítica | Divinas Divas

    Crítica | Divinas Divas

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    Divinas Divas segue uma estilização mais pessoal e íntima do que o convencional, e busca ser tão transgressor quanto as suas biografadas, ainda que seu clima de louvor não tenho o mesmo caráter de discussão e interferência na ordem como foi o caso das oito divas drag queens retratadas no longa. Após uma longa luta dos diretores para finalmente conseguir exibição do filme, o resultado é um produto singelo, sentimental, explicativo ao seu modo sem ser explicito, mas ainda uma ótima introdução a quem não compreende absolutamente nada sobre este universo.

    A atriz Leandra Leal conduz o filme, uma vez que a questão de registrar uma biografia já na idade a avançada de Rogéria, Jane Di Castro, Divina Valéria, Camille K, Eloína dos Leopardos, Fujika de Halliday, Marquesa e Brigitte de Búzios era uma opção pessoal, já que era no Teatro Rival do seu avô Américo Leal que ocorriam os shows das mulheres que buscavam seu espaço. É curioso notar que existe um padrão de vida entre elas, tendo algumas delas nascido em bairros suburbanos, como Piedade, Oswaldo Cruz e Madureira, bem distantes dos cartões postais da cidade do Rio de Janeiro, o que faz se tornar ainda mais curiosa a ascensão dessas ao patamar de estrelas,  uma vez que viver na periferia torna proibitivo uma serie de atividades na Cidade Maravilhosa, por causa da distância e agravada pelo transporte precário nos anos sessenta e setenta.

    Em comum entre elas, havia o desejo quase que originário de se tornar mulher. A identidade civil masculina é desconstruída em uma bela montagem introdutória, que justapõe as fotos como meninos ainda, na juventude, cortando para suas identidades como vedetes. Ao contrário do que qualquer pré-julgamento via intuição pode supor, os detalhes em relação a aceitação da família de cada uma é bem diferente, bem como o passado financeiro de todas, mostrando personagens tanto de origem humilde e trágica, assim como retrata figuras como Rogéria, que teve uma vida abastada e jamais foi rejeitada por qualquer membro de sua família.

    Leal escolheu para seu filme o mesmo formato de Diário de Uma Busca, de Flávia Castro, onde a aproximação de realizador com biografado é enorme e a interferência dele é muito grande. Neste estilo o cineasta acaba fazendo parte da trama principal, invadindo o espaço do filme. Filmes como esses se notabilizaram por contar histórias da Ditadura Militar, como Marighella e Os Dias Com Ele, entre outros, como Dzi Croquettes, que tem inclusive uma temática parecida. A despeito de qualquer comparação esdrúxula, cada uma dessas histórias tem seus próprios detalhes, emoções e intimidades, e as personagens de praticamente todos esses filmes merecem uma análise mais detalhada sobre suas histórias e carreiras, haja visto a construção da identidade nacional que todos esses ajudaram a formar.

    O show que seria o revival das já sexagenárias artistas é muito bem acompanhada pela câmera comandada por Leal, e o registro engloba múltiplas mensagens, desde a desconstrução do conservadorismo da época, que pregava a proibição do amor dessas pessoas, até a terrível aceitação de muitos preconceitos, por medo de violência corriqueira e da repressão da Ditadura Militar. Uma das entrevistadas fala que não se pode ser contra a sociedade, se não elas viram animais em extinção, e a sensação é exatamente essa, de que as oito foram mulheres que gozaram de privilégios que a maioria da sua classe não teve. A mostra desses fatores faz da experiência em Divinas Divas algo transcendental e tocante, além de um registro necessário e reverencial.

    https://vimeo.com/77186623

  • Crítica | Chatô: O Rei do Brasil

    Crítica | Chatô: O Rei do Brasil

    Chatô O Rei do Brasil 1

    Após uma longa espera, aproximadamente vinte anos depois do início da produção, Chatô: O Rei do Brasil chega as salas de cinema brasileiros com uma distribuição curta, fruto do óbvio descrédito que o seu diretor Guilherme Fontes tem após polêmicas que envolvem uso de verba pública, processos criminais e muitos outros espectros polêmicos. O corte de 102 minutos contém uma abordagem singular com um conjunto de influências que vai muito além do comum aos blockbusters brasileiros.

    A obra de Fernando Morais é muito completa, tanto na pesquisa histórica, quanto na construção fantasiosa da figura de Francisco Assis Chautebriand. E a vontade de Fontes – que primariamente sequer seria o diretor – em retratar o comunicólogo passa por óbvias comparações com Cidadão Kane de Orson Welles graças a temática, passando também por uma aura utópica que faz lembrar as viagens mentais de David Cronenberg e o hermetismo visto nos filmes de Jim Jamursch. Na primeira cena, Marco Ricca já aventa uma das origens de Chatô, reunindo elementos típicos do teatro em um dialeto metalinguístico.

    Chateubriand era um homem de excessos e, para representar tais extravagâncias, a fotografia de José Roberto Eliezer, a direção de arte e o roteiro andam lado a lado, em um trabalho primoroso que ajuda a construir o cenário político e midiático o qual o biografado vivia. Além da questão do deslumbre visual, os personagens são bem retratados, em especial Paulo Betti, com um jocoso Vargas (com muito mais alma que Tony Ramos, no filme recente Getúlio), Andrea Beltrão como o interesse amoroso de quase todos os homens, a Senhora Vivi, e até Gabriel de Braga Nunes, como o antigo pupilo e mais tarde rival Rosemberg, em uma performance que faz perguntar o que aconteceu com sua promissora carreira.

    No entanto, apesar das ótimas apresentações de coadjuvantes, que ainda contavam com Leandra Leal adolescente e com o esplendor de Leticia Sabatella, os holofotes estão todos sobre Marco Ricca que consegue como poucos representar o glamour, grosseria e carisma de sua personagem, que infelizmente será pouco visto, graças ao ínfimo número de salas em que será exibido – em torno de quarenta – somando Rio e São Paulo. Tal agouro e o trabalho de guerrilha de Fontes em fazer o filme circular é certamente atrelado ao salário de seus pecados enquanto administrador de verba e como cineasta.

    Muito se fala a respeito desta polêmica, e o conjunto de boatos faz as informações se desencontrarem. A reunião de Fontes com Francis Ford Coppola gerou uma comparação curiosa e bastante irônica, pois, em Apocalypse Now ocorreu também um problema como este com estouro de orçamento e produção demorada – sem verba pública, afinal, a máquina de Hollywood funciona com outros combustíveis. O processo no filme de guerra também se arrastou por anos e o resultado final é uma obra prima, comparável as melhores obras do cineasta. Curioso como um pecado de Copolla tem um peso e o de um inexperiente (e brasileiro) tem para parcela do público e crítica, analistas que se permitem ser tão criteriosos e exigentes, mas que apresentam dois pesos nestes diagnósticos.

    A metalinguagem utilizada no programa de tribunal, aberto ao público é inteligentíssima, conseguindo atingir toda a megalomania e egocentrismo presentes no ideário de Chateubriand, exibindo de modo burlesco, curioso e colorido, ao mesmo tempo em que discute hipocrisia, jogo de poder e influência econômica e social. A harmonia entre o formato e o conteúdo de contestação é impressionante, com um poder pouco visto mesmo dentro do melhor dos cenários dos filmes nacionais.

    Chatô: O Rei do Brasil é fruto de seu meio e filho de sua própria história. A grandeza narrativa e dramatúrgica vista no filme que Fontes orquestrou só fazem sentido graças a atualidade e aos temas políticos discutidos nos anos 2010, em especial no que tange o monopólio midiático. Os paralelos com a manipulação da imprensa são atuais, mostrando que a demora em se definir enquanto filme fez amadurecer o texto do primeiro tratamento do roteiro, claramente modificado em essência, desde sua concepção até o resultado final exibido na tela grande. A política e a origem de Chatô são respeitadas, o que faz valer ainda mais o esforço em tornar real este belo quadro sobre um dos mais notáveis brasileiros que já existiu.

  • Crítica | O Fim de Uma Era

    Crítica | O Fim de Uma Era

    O Fim de Uma Era 1

    O mais teatral, e também repleto de classicismo, filme da trilogia de Sonia Silk, O Fim de Uma Era, contém prelúdios, mesmo com uma duração inferior ao tempo cronometrado de uma partida de futebol. O roteiro de Bruno Safadi e Ricardo Pretti (também diretores) contempla o ócio de quem já trabalhou com a arte, ainda que o texto seja o hiato entre as obras, focando a metalinguagem inerente à busca por inspiração poética.

    Os momentos do filme se dividem segundo as etapas do processo criativo que desemboca na produção cinematográfica, incluindo Ricardo Pretti como elemento narrativo da história, uma vez que seu filme é uma ode ao “fazer um filme”. Os recursos de quebra entre os segredos de público e cineastas inclui uma reciprocidade poucas vezes vistas no cinema comercial, agravada e muito pelo caráter ensaísta, que insistentemente goteja sobre a cabeça do espectador, relembrando o espírito de experimento da fita.

    A narração e a ausência de cores faz lembrar o recente filme de Taciano Valério e Jean-Claude Bernardet, Pingo D’água, inclusive nos problemas de ritmo e de captura de atenção do público. Da trilogia, este é o filme de estética menos palatável para o público médio, exigindo de quem assiste a ele uma atroz paciência com os recorrentes maneirismos  e propostas que atravessam a normalidade cinematográfica.

    As viagens de carro visam remontar o deslocamento comum entre uma locação e outra, fazendo menção à falta de um lar que o artista tem ao se lançar no nomadismo comum em rotinas de viagens. O roteiro até tenta acompanhar a beleza das imagens, mas sem lograr êxito, somente arranhando a superfície do que deveria ser uma redação realmente profunda.

    Mesmo com uma duração somente um pouco maior que uma hora, é às vezes necessário o público acordar entre uma cena e outra, tendo interesse genuíno em poucas falas, excetuando, talvez, os diálogos que desconstroem a figura mítica do ator. Um caminho inverso da supervalorização do ofício da interpretação, cargo em que, normalmente, se atribuem os maiores méritos do sucesso de uma empreitada audiovisual.

    O enfado e cansaço tornam-se sensações comuns ao espectador, que prossegue até o final de O Fim de Uma Era, sem maiores conclusões ou aprofundamento filosófico. É na poesia rasa o mote de sua trama, com dificuldades tanto em emocionar quanto em fazer qualquer sentido além da simples frivolidade pretensiosa de um artista iniciante, pecados esses incondizentes com as filmografias e carreiras de Safadi e Pretti.

  • Crítica | O Rio Nos Pertence

    Crítica | O Rio Nos Pertence

    O Rio 1

    O segundo capítulo da chamada Operação Sonia Silk – iniciada com O Uivo da Gaita – inicia-se em um breu absoluto, onde a fúria do som predomina sob a paz que a escuridão deveria propagar. Após os preâmbulos, notam-se duas pessoas interagindo, com Marina (Leandra Leal) nua, poetizando sobre o corpo desnudo de seu parceiro, em um momento de extrema intimidade, convidando o público a usufruir do instante de epifania de ambos. O significado de amor líquido prossegue na nova história.

    O filme dirigido por Ricardo Pretti reúne uma aura de mistério exacerbada. Iniciada pelo retorno de Marina a sua terra natal, que se deu por motivos misteriosos, com conhecimentos aquém de sua existência. Ao atravessar as areias praianas, a bela mulher ouve urros, sons indecifráveis de criaturas possivelmente sobrenaturais, responsáveis por uma insônia que a assola, que aumenta a angústia de sua vida e a faz se isolar ainda mais.

    A paranoia fomentada por cartas recebidas em casa, com os dizeres “O RIO NOS PERTENCE”, convive  junto a afeição pela filosofia nietzschiana, profetizada pelo professor e estudioso vivido por Jiddu Pinheiro, um antigo amor de Marina. O reencontro entre ambos passa longe de ser tão calmo e resoluto quanto são as aulas do docente, excetuando os olhos atentos dos alunos ávidos por conhecimento. O que sobra são desprezos que visam retribuir  a ignorância ocorrida no pretérito, reflexos de uma parte da vida que o homem preferia esquecer, mas que insistentemente retorna.

    O regresso de Marina traz muitos infortúnios. Indagações da parte da personagem de Mariana Ximenes, que, impossibilitada de movimentar as pernas, anda com ajuda de muletas e faz questão de despejar sobre a protagonista seu azedume, o amargor do desprezo que ela achou sofrer com a partida de sua “igual”. A discussão que Marina tenta impetrar é adulta, diferente da fuga que sua irmã faz. O confronto aos fantasmas do passado é demasiado traumática para a mulher incapacitada, e bastante incômodo à “filha pródiga” que seguiu seus instintos.

    A ideia de remontar e costurar referências aos contos macabros de Edgar Allan Poe e H. P. Lovecraft é válida, apesar de não ser inédita em produções brasileiras – em especial o seriado Contos do Edgar –. Mas apesar das belas intenções, o sentido presente no roteiro de Pretti é vago em essência, supervalorizando o suspense e todo o misterioso caráter dele proveniente. Em muitos momentos, o texto soa pretensioso, com as mesmas características negativas do primeiro episódio de Sonia Silk. Utilizando elementos de filmes de terror, no entanto, a obra se faz ligeiramente mais interessante.

    A dubiedade presente na incerteza entre toda a aura maligna ser fruto de uma ação espiritual ou apenas um reflexo de uma depressão ideológica e de sonho da psique frágil de Marina, O Rio Nos Pertence se perde em meio a uma trama que pretende muito e entrega pouco, reeditando a tentativa vã de utilizar um viés erudito. Ainda que a experiência de assistir a O Rio Nos Pertence seja bem menos tediosa do que no filme de Bruno Safadi, falta consistência ao produto final.

  • Crítica | O Uivo da Gaita

    Crítica | O Uivo da Gaita

    O Uivo da Gaita 1

    Primeira parte de uma trilogia de “amor líquido”, O Uivo da Gaita é uma história regida por Bruno Safadi que tem na rotina amorosa a pauta da segurança enquanto unidade familiar. O início, contemplativo, revela belas imagens da costa litorânea carioca, reunindo todos os sentidos possíveis da história de amor. Já na areia, as duas personagens femininas fazem uma descompromissada corrida atrás do vento, sem qualquer sentido ou moral, unicamente seguindo seus instintos.

    Luana e Antônia se entregam ao prazer proibido, maximizado por suas duas belas intérpretes, Leandra Leal e Mariana Ximenes, que fazem produzir cenas tórridas, dignas de qualquer fantasia heterossexual masculina, possantes e potentes, mesmo nos parcos minutos iniciais, para logo depois revelar o presente, momento em que o roteiro pretende montar sua história.

    Abrindo mão de falas que poderiam prever qualquer movimento, o roteiro contempla a “vida real” de Antônia, presa em uma relação comum com Pedro (Jiddu Pinheiro), relacionamento cujo cotidiano pesa mais do que qualquer outro aspecto. Os ecos audíveis das pessoas flagradas em cena só ocorrem aos quinze minutos, com quase um quarto de filme, somente para reforçar a ideia de discussão de relação, ainda que a abordagem entre os antes iguais esteja claramente na curva descendente, às vésperas de acabar.

    É em uma das interações entre Pedro e Antônia que Luana surge, a princípio para “brincar” com eles, dançando em um ritmo louco, levantando possibilidades de poligamia, artifício comum em relações em fase de degradação, mas aos poucos os paradigmas mudam. Os jogos de sedução começam brandos, algo bem diferente do explícito exibido no começo da fita.

    Os ângulos que Safadi escolhe primam pela sensualidade, esbanjando bom gosto especialmente ao analisar as voluptuosas curvas de Leandra Leal e seu poder de alcançar o fetiche das duas partes do casal. A naturalidade dos seus movimentos mostra-se também para a câmera, que causa choro e emoção às duas partes do casal, mas que não consegue passar tal ebriedade ao público, pelo caráter lento da narrativa, ambiciosamente dividida em três longas-metragens.

    Mostrando pessoalidade na confecção de seus heróis, o realizador insere uma desolação de alma no comportamento distinto de Luana, mostrando-a desagradável em sua rotina comum, longe das outras duas personagens. O affair construído causa uma interdependência que se assemelha à sensação abstêmia de quem é obrigado subitamente a deixar de usar uma substância da qual é dependente.

    O desfecho é inconclusivo, referenciando a segunda parte, O Rio Nos Pertence, que explora o mesmo elenco mas em tramas diferentes, tendo em comum o cenário da cidade maravilhosa. Depois das dedicatórias, há uma cena pós crédito que relembra a lentidão narrativa da obra, tornando erudito um texto simples, mas que pouco foge das convenções sofisticas. Apesar das boas imagens, o filme é mais digno de reprimendas do que de aplausos.

  • Crítica | O Lobo Atrás da Porta

    Crítica | O Lobo Atrás da Porta

    O Lobo Atrás da Porta

    Sylvia (Fabíula Nascimento) chega à escolinha para buscar a filha, Clara (Isabelle Ribas), e, após ser avisada pela professora de que alguém já havia levado a menina, chega à conclusão de que a menina foi sequestrada. Na delegacia, tanto Sylvia quanto a professora prestam depoimento, enquanto aguardam a chegada de Bernardo (Milhem Cortaz), marido de Sylvia. Ao chegar, Bernardo inclui mais um elemento na história, Rosa (Leandra Leal), uma “conhecida” que supostamente estaria fazendo uma brincadeira com ele ao sequestrar sua filha.

    E o que inicialmente parece ser um filme policial torna-se um drama com nuances rodriguianos. Os esqueletos vão, aos poucos, sendo retirados do armário à medida que tomamos conhecimento do triângulo amoroso envolvendo Sylvia, Bernardo e Rosa. Ao espectador, revela-se apenas a versão dada pelos personagens, a cada conversa com o delegado (Juliano Cazarré). E a cada conversa, mais detalhes são adicionados. E, à exemplo da Igreja da Sagrada Família, de Gaudí, o panorama completo é construído aos poucos, à medida que a trama avança. Como uma casa à qual se adicionam vários “puxadinhos” de acordo com a necessidade.

    Interessante notar que a fotografia do filme reflete essa compartimentalização. O uso frequente de planos-detalhe faz lembrar que o que é visto é apenas parte do todo e, sendo assim, pode não refletir totalmente a realidade. Assim como reafirma a importância de se dar atenção aos detalhes, às sutilezas, às entrelinhas. Instiga o espectador a se questionar sobre o que está acontecendo no espaço fora de quadro de forma bastante inteligente. Os enquadramentos fechados, tanto os planos-detalhe quanto os closes, são claustrofóbicos, dão uma sensação de confinamento que reflete o estado de espírito dos personagens enquanto depõem. É curioso reparar como em alguns momentos a câmera parece esperar que os personagens se movam para dentro do quadro.

    Acompanhando os depoimentos de cada um dos personagens, a linha temporal vai se alternando, entre flashbacks, o que está sendo contado e o presente. E os flashbacks, assim como os depoimentos, ficam mais longos e mais detalhados, revelando a complexidade tanto dos personagens quanto do relacionamento entre eles. Os três envolvidos deixam de ser estereótipos dum triângulo “clássico” e começam a exibir outras facetas, passando da bi para a tridimensionalidade com bastante fluidez. E a cada novo evento adicionado, a cada traço de caráter que se descobre, o espectador é obrigado a repensar sua opinião a respeito de toda a situação. Os personagens vão de ‘mocinho’ a ‘bandido’ e de volta a ‘mocinho’ à medida que os conhecemos melhor. Ninguém é 100% inocente ou 100% culpado. E não se pode confiar totalmente no que dizem.

    O roteiro eficiente não conseguiria ser tão impactante não fosse o elenco em plena sintonia. Fabíula Nascimento e Milhem Cortaz estão muito bem, com atuações na medida para seus personagens. Mas o destaque mesmo é Leandra Leal, que conseguiu fazer Rosa oscilar entre ingenuidade e sensualidade, entre olhares enigmáticos e suplicantes, entre doçura e ressentimento, com uma sutileza que não deixa espaço para o espectador duvidar de suas ações  mesmo as mais extremas.

    Considerando que este é o primeiro filme de Fernando Coimbra, resta ao público torcer para que o diretor não perca a mão e continue levando às telas tramas com a mesma qualidade de sua estreia.

    Texto de autoria de Cristine Tellier.