Crítica | O Mundo Imaginário do Doutor Parnassus
Não deixa de ser curioso um artista fazer um O Mundo Imaginário do Doutor Parnassus. Todo cineasta tem um complexo de Deus bem forte norteando suas criações, de cabo a rabo, e Terry Gilliam, por mais maluco que possam ser suas crias, nunca foi louco o bastante pra negar isso. Apesar do seu filme de 2009 ter ganho fama pela morte de Heath Ledger durante as suas filmagens, e três atores terem entrado (de repente) no elenco para tapar o buraco que o astro deixou (no filme e na indústria americana, até hoje), é muito forte a necessidade de se construir um jogo simbólico que Gilliam extravasa em suas histórias, sempre habitando e se refugiando em universos paralelos e numa excentricidade muito própria, semi-organizada, semi-luxuosa e que pode muito bem estimular a paixão dos espectadores pelo onipotente mundo das artes.
Contudo, não foi este o caso em 2009. Tínhamos um diretor aqui que adora mistificar seu ponto de vista em nítidos exercícios de fabulação com aparente total falta de responsabilidade com o real, e o factual. Uma parte técnica impecável (a direção de arte e os figurinos saltam aos olhos) e um elenco dos mais respeitáveis possíveis, numa orgia de surrealismo, brilho e cacofonia dos mais cafonas e bregas dos últimos dez anos. Um bom exemplo de pirotecnia moderna que deu certo? Across the Universe, um musical que justifica suas epifanias e todas as suas loucuras visuais com um bom senso e um bom gosto que Gilliam parece ter absoluta dificuldade em reproduzir, aqui. Isso vindo da mente de quem produziu Monty Python em Busca do Cálice Sagrado, um verdadeiro marco da comédia dos anos 70, e o ótimo Os Doze Macacos, talvez o seu melhor.
Mas por quê? Crise criativa, talvez, ou apenas um projeto ambicioso demais e fora de hora de quem batalhou tanto pra adaptar Dom Quixote nas telas e se contentou no momento com isso. Uma pena! Gilliam é o típico arquiteto de grandes espetáculos que não decola em quase nada que propõe ultimamente, mesmo tendo uma visão corajosa mas sempre exagerando na plasticidade e na histeria acachapante para com o conteúdo e o visual das suas fábulas tão amalucadas. Aqui, temos um circo chefiado pelo misterioso Dr. Parnassus e que cuja grande atração merece o adjetivo: Um espelho, dos mais comuns, mas que permite enxergar e participar de outras dimensões “incríveis” adentrando num simples móvel de vidragem mágica.
Todos os conflitos do filme giram, obviamente, em torno deste objeto e das inúmeras possibilidades que ele carrega em sua existência, mas o problema é um só: Gilliam não se chama Michael Powell. Aos que não o conhecem, Powell foi o que Gilliam, Tim Burton, Guillermo Del Toro e tantos outros de hoje em dia tanto querem ser, e nem com o avanço da tecnologia atual a seu favor conseguem: um legítimo mago da fantasia, capaz de unir inúmeras realidades e os mais diversos e belos sentimentos através do balé de uma bailarina púrpura, ou de uma escada banhada de sol que liga a Terra, ao céu. Nos clássicos do maestro inglês, a magia não é gratuita porque é profundamente acalentadora e sabiamente expressiva, enquanto que no filme de 2009, comanda-se os limites e as direções de uma fantasia colorida e sem sentido como quem comanda uma criança frenética perdida numa loja de doces, ou o Hulk durante um dos seus surtos urbanos devastadores.
Nisso, tem-se uma imaginação concretizada na tela e regida pela vontade de explorar a loucura que reside na mente humana – tudo é válido, ao mesmo tempo que tudo é falso. O espectador comum pode até dizer que nem o país das maravilhas é tão caótico quanto esse imaginário que cabe no limiar de um espelho, e ele está certo! Arcando com o preço da incoerência de uma fábula que se desenrola aos tropeços, e que tenta ser um épico feito o maravilhoso Neste Mundo e No Outro, grande obra de 1946, tudo em O Mundo Imaginário do Doutor Parnassus não passa disso: Escapismo furado e dos mais baratos e banais que o Cinema americano pode oferecer, entre suas ilusões milionárias. Fica a lição que, por mais que um autor mistifique os seus mundos e se ache apto a malabarizar seus elementos simbólicos e contextuais, criando inclusive novos e revitalizando sua assinatura de delírios imagéticos de filme em filme, toda megalomania suprema precisa e deve justificar sua essência e a sua razão de existir.
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