Resenha | 1933 Foi Um Ano Ruim – John Fante
Alguns livros são gratas surpresas, nos prendem, tem um tom especial que nos chama a atenção e nos fazem por alguns momentos suspender nossa realidade e mergulhar em outra, não necessariamente melhor, mas certamente diferente. Cada vez mais procuro fugir da expectativa (embora goste de ouvir opiniões acerca do livro, desde que devidamente livres de spoilers), pois ela costuma deixar a leitura condicionada, esperando algo que não costuma corresponder ao que você pensou ou imaginou.
Foi com esse pensamento que iniciei 1933 foi um ano ruim, de John Fante, procurei entrar o mais desprovido possível de pretensões pré-concebidas. Posso dizer que o resultado foi muito bom, encontrei uma literatura leve e espirituosa, simples mas não simplista, cuja narrativa e não-complacência lembraram-me o Holden Caufield, de O Apanhador no Campo de Centeio.
John Fante nos conta a história de Dominic Molise através dos olhos dele próprio, filho de pais pobres e uma família estadunidense (descendente de imigrantes) desprovida de luxos, cheia de dívidas, com um futuro incerto em um ano nada auspicioso, já que haviam se passado apenas quatro anos da chamada “Grande Depressão”, ou seja, ainda se viviam os desdobramentos da profunda crise econômica.
Dominic Molise não se destaca no colégio, se irrita com o fanatismo religioso de sua mãe, discute aos berros com sua avó (uma ranzinza conservadora saudosista, para quem nada nem ninguém que existe é bom), troca bravatas com seus irmãos e oscila entre compadecimento e raiva de seu pai, que passa as noites em bares, jogando sinuca e envolvendo-se com sirigaitas.
As perspectivas que se apresentam a Dominic são: 1. aprender o ofício de pedreiro e trabalhar com seu pai até que eles tenham dinheiro suficiente para que eles iniciem uma construtora própria (o que é altamente improvável); e 2. usar sua habilidade de lançador para se tornar um jogador de beisebol profissional. Ele não tem dinheiro o suficiente para apresentar-se a qualquer time para um teste, nem quer trabalhar com seu pai, correndo o risco de estragar O Braço (quase uma entidade, a passagem de Dominic e sua família para fora de sua vida miserável) que com tanto zelo cuidou desde a mais tenra idade para dedicar-se ao beisebol.
Nesse dilema, vivenciado junto com seu colega Kenny, de uma família mais abastada, é que John Fante cria uma trama fluida e aprazível, que descortina um drama particular que tem como pano de fundo o cenário de desolação econômica que se sucedeu a crise de 29. O chamado “american way of life”, que começou a dar as caras na bonança dos anos 20 (mas que se tornou mais amplamente conhecido e delimitado pós-Grande Depressão e Segunda Guerra Mundial), entrava em crise juntamente com a economia e impregnava a literatura da descrença nesse modelo que se mostrava tão frágil.
A situação de Dominic tem um apelo gigantesco, já que se vê refletida nas vidas de muitas pessoas, tanto daquela época como de hoje em dia, como um espelho despedaçado. Molise enfrenta sua dura realidade com sarcasmo e bom humor, tomando decisões drásticas como meio de sobrevivência, perturbando sua consciência com tantos dilemas. Fante consegue fazer-nos compadecer do pobre Dominic, abandonado a sua azarada sorte, evocando a emotividade em diversos momentos, já que o jovem tem raiva e pena de sua mãe, seu pai e sua avó, afinal, eles são tão vítimas quanto ele de toda essa realidade acabrunhante. Só que a emotividade somente vem para lembrar-nos de que somos humanos, para situar-nos no lugar de Dominic e fazer-nos sentir o karma que paira sobre sua cabeça, sem que, por esse recurso, o autor entre na seara da auto-
complacência ou pieguice.
Junto a esse turbilhão de etéreos sonhos e árida realidade, Dominic ainda enfrenta o rito de passagem da infância a vida adulta, dividido entre dois mundos, enfrentado a dualidade transitória ao mesmo tempo em que se vê jogado na cisão social que o separa dos “outros”, como o abastado Kenny. Fante, que ficou conhecido principalmente com Pergunte ao Pó e foi tido por Bukowski como o “precursor dos beats”, nos brinda com uma história que embora não transcenda grandemente em mergulhos profundos sobre a natureza humana e questões existenciais, metafísicas etc., consegue manter-se como um bom livro que versa sobre a persistência em condições nada favoráveis sem cair nas tentações enganadoras da auto-ajuda.
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Texto de autoria de Lucas Deschain.