Crítica | Um Cadáver para Sobreviver
Comédias do absurdo são tão antigas quanto andar pra frente, ou para as gerações mais novas, tão ancestrais quanto a fama de Daniel Radcliffe como Harry Potter. Na esteira de seu rosto universalmente reconhecido, e não menos apático por isso, o que combina com seu personagem literalmente já falecido do filme em questão, vem Paul Dano, que explodiu como o adolescente rebelde e indignado de Pequena Miss Sunhine, o mais adorável dos road-movies americano estilo família.
É claro que Dano tem mais carisma que o bruxinho, que fez sua carreira apoiado no carisma de Radcliffe (ou seria o contrário?) e nas possibilidades do amado personagem, e é mais claro ainda o quanto Um Cadáver para Sobreviver tenta equilibrar 1) o potencial de seus dois atores principais em cena, e 2) o frenesi de sua trama naturalmente desequilibrada diante do real e do racional, numa história que, de nonsense e escrachada, sem limites quanto ao delírio, se equipara a qualquer clássico com Leslie Nielsen – ou a qualquer passagem surrealista de Kafka, mas com muito mais senso de ridículo e astúcia que as comédias pastelão com Adam Sandler e cia, com nada a oferecer senão ofensas a sanidade humana. Esquece-se que o absurdo não precisa ofender, então, muito pelo contrário.
Resta ao filme apostar suas fichas ao humor impactante de situações inacreditáveis, relegando ao jovem Hank (Dano) a única opção de escapar de uma ilha, aonde, por alguma razão, foi parar, apostando na flatulência de um corpo-humano à beira-mar para escapar da prisão natural e sobreviver. Com sérios problemas intestinais e parecendo um zumbi desidratado, afinal o corpo muda abruptamente durante o óbito (como se o filme precisasse ser realista depois de uma cena dessas…), o cadáver peida mais que um corpo humanamente poderia aguentar; tanto, que na ausência de responsabilidades realistas (ou morais), Hank monta nas costas desse morto muito louco e bye-bye aos arquipélagos. Simples assim. Dai em diante, o que esperar senão o tudo? Felizmente, Um Cadáver para Sobreviver (entendeu o título agora?) tem tantos momentos inspirados que fica difícil não se converter a histeria proposta. O inacreditável, tal a sagacidade inesperada da obra, esbarra até na piada de que um homem pode morrer, mas seu pênis não, e após essa (hilária) cena entre os dois protagonistas e uma foto sedutora, no meio da floresta, a história rasteja tímida e vacilante para o romantismo e o senso de amizade que também podem resistir num corpo flácido e em processo de putrefação.
Uma podridão que, aparente e subitamente, seria só externa.
Um filme que nos vence pela criatividade e a coragem dos seus produtores. É indiscutível, também, o quanto Radcliffe está inspirado, transparecendo seu esforço narrativo de atuação debaixo de uma maquiagem que o faz lembrar uma das criaturas de The Walking Dead, só que com mais apatia e olhos mais bonitos. Também não deixa de saltar aos olhos o uso modesto, como tudo nesse filme, dos signos semióticos que o Cinema do Absurdo precisa se apoiar e aludir ao extremo, como os elementos de O Lobo de Wall Street (dinheiro, bolsa de valores, luxo, prostitutas, drogas…) ou o japonês Hausu (o espírito, o sangue, a casa mal-assombrada, o grito…). É como se o mestre David Lynch quisesse enfiar o pé na jaca e dirigir uma comédia romântica pra molecada, só que sem uma grande textura atmosférica, ou sequer uma notável consistência dramática por ser este um filme que nunca precisou ser cinemão de verdade, nunca comprometeu-se com reflexões atmosféricas sobre vida, ou arte, mas contagia e entretém de forma indiscutível por suas questões idealistas, suas imagens fantásticas, seu gosto de fábula na tela, sempre bom, e pela graça que pode ser extraída de situações divertidas e inimagináveis. Fail.