Resenha | Maria da Greve – Eduardo Maffei
“O fracasso de hoje, é a semente para a vitória de amanhã!”
Cinco anos após a Greve Geral de 1917, a primeira greve do Brasil, em que operários reivindicaram diante dos portões e dos cães de guarda da “elite brasileira” por melhores condições de trabalho, enquanto lá fora explodia a Primeira Guerra Mundial, a jovem Maria (apenas Maria) virou uma órfã. Ou seja, uma rejeitada, de casa em casa feito uma peteca após seu pai ter morrido na luta por melhores salários, segurança e direitos aos peões das grandes fábricas em São Paulo. O cenário de Maria da Greve é uma Paulicéia traumatizada cuja indústria, a mais poderosa da América Latina, ainda tentava se reerguer da anarquia e das perdas socioeconômicas que o Julho de 1917 trouxe, brutalmente, aos cofres e ao bem-estar da capital mais rica da nação. Depois das revoluções industriais no final do século XIX, na Europa, a luta de classes tinha finalmente desembarcado nas terras de Carmem Miranda.
Em meio a esse pós-caos de um coletivo profundamente desigual, e que ainda colhia os cacos do impacto que os movimentos operários paulistanos trouxeram à política e a economia brasileira, o ano é 1922 e quem sobreviveu a Greve de 17 tem muita história para contar – e verdades para rever. O romance de Eduardo Maffei faz explorar as consequências não só materiais, mas ideológicas de uma gente brasileira que foi subjugada, pela primeira vez, pelo conceito chamado “consciência de classe”. A lógica importada e antes imutável dos poderosos agora apresentava contradições e falhas no Brasil, o último país das Américas a abolir a escravidão. Eles, os invisíveis, queriam (e querem) continuar a sufocar a voz dos “revoltosos”, ou como seriam vistos num outro contexto político na Ditadura Militar, os “subversivos”. Esses, o povo, queriam ser tratados como gente num período de inflação nas alturas causada também pela escassez de alimentos. A injustiça estava no ar, e o proletariado podia quase apanhá-la com suas mãos calejadas.
E Maria ia, de lá pra cá, daqui pra lá, até cair num orfanato casca grossa cujo espírito do tempo de 22 não poupou de influenciar os costumes, e a dureza da rotina lá de dentro. Acusada de ser filha de um “revolucionário fracassado” pela diretora do orfanato, a doce Maria precisava de atenção especial, pois “de boa gente ela não vem”, segundo a própria diretoria que não via a menina com bons olhos. Tal pensamento é reforçado pela própria narrativa fragmentada de Maria da Greve, que vai muito além das paredes de puro autoritarismo daquele orfanato de garotas esquecidas, sem sonho nem futuro. Aqui, personagens que expõe e se chocam com a mentalidade progressista e reacionária da época fazem desta publicação da Editora Brasiliense um verdadeiro mural das grandes questões que tanto fizeram borbulhar e explodir as relações de família, de amigos, de casais e de trabalho; relações essas que nunca mais seriam as mesmas após serem afetadas pelas conjecturas externas que nos regem, afinal, vivemos numa sociedade.
Maffei afirma-se aqui como um escritor de impressionante poder de síntese, discursando em breves páginas a importância histórica das artes e do pensamento livre num mundo que, no século XX, já passou a ver o dinheiro como o único elemento essencial da realidade, e como é vital o exercício de filosofar e debater as questões que envolvem todos os níveis da nossa vida. Vale, portanto, destacar o extraordinário capítulo 9 no qual Maria da Greve resgata com veemência o brilho do questionamento filosófico, numa discussão entre dois amigos de infância, no centro de São Paulo, cada um com uma visão radicalmente diferente de mundo, e que depois eles vem a perceber, se completam. Isso porque, em 1922, na esteira da Greve Geral, as instabilidades no senso comum infectavam os bolsos e corações da classes, duas esferas que mesmo ao precisarem de um consenso pelo progresso, as antigas mágoas impediam o necessário acordo de interesses e só faziam prolongar os embates civis daqueles tempos.
O que terá acontecido às Marias, as meninas que cedo viram mulher jogadas ao léu? Aos jovens estudantes que jamais tiveram o aval dos pais ao lutarem não por dinheiro, mas por um futuro melhor ao próximo, o que 1922 guardou para os altruístas, aos artistas, aos médicos, aos donos do capital e suas amantes em fuga para Paris afim de não aumentar uma moeda sequer do salário de seus escravos, digo, empregados (muitos estes que acabaram de sair das senzalas e, com sorte, conseguiram trabalho numa fábrica paulista)? Relevante para com a nossa perspectiva história aos fatos que compõe a base política moderna do Brasil, Maria da Greve faz parte da tetralogia documental “Maria da Greve e o Etopeu”, sob o propósito de ilustrar a alma conflituosa de uma sociedade em plena atualização de ideais, na capital financeira do país. E ademais, por onde anda o espírito revolucionário do século XXI? Desse, ninguém sabe. É que o desconforto, por incrível que pareça, ainda não é grande o bastante.
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