Tag: Penelope Cruz

  • Crítica | Todos Já Sabem

    Crítica | Todos Já Sabem

    De uma certa maneira, Todos Já Sabem (Todos Lo Saben/Everybody Knows) é a culminação nem tão saudável dos interesses de Asghar Farhadi (À Procura de Elly, A Separação, O Apartamento) como contador de histórias. Se por um lado as tensões e a própria narrativa são bem costuradas ao longo do filme, também é verdade que nada parece muito sincero e natural além da química entre os estrelados componentes de seu elenco. Talvez exista um filme recôndito menos bombástico e mais genuíno em Todos Já Sabem, mas Farhadi não o apresenta e permite, até compreensivelmente, que tal franqueza seja posta de lado em favor das atuações de Penélope Cruz, Javier Bardem, Bárbara Lennie e Ricardo Darín.

    Girando em torno do desaparecimento súbito de Irene (Carla Campra), filha adolescente de Laura (Cruz) e Alejandro (Darín), durante a visita de quase todo o núcleo familiar, residente na Argentina, à pequena cidade nos arredores de Madrid onde Laura viveu durante boa parte de sua vida e na qual suas irmãs e seu pai ainda moram e o casamento de uma delas, a mais nova, ocorrerá, o longa introduz de maneira relativamente expositiva e direta os temas que conduzem sua narrativa: dilemas e imperfeições familiares escondidos ou negligenciados em nome da harmonia e da felicidade alheia. A família de Laura não passa por dificuldades que vão além de questões cotidianas, e é justamente esta a razão para o ocaso causado pelo evento extraordinário que leva o filme adiante e move as peças pelo tabuleiro – pessoas consternadas e razoavelmente perdidas diante de algo além de seu controle e aparentemente distante de uma resolução.

    A reunião familiar devido ao matrimônio de Ana estabelece rapidamente a dinâmica entre as personagens: Laura é uma filha distante apenas geograficamente, aparentemente bem casada com o ausente Alejandro e com um casal de filhos, Mariana (e sua família, Fernando e Rocío, respectivamente marido e filha passando por problemas no casamento e com uma filha pequena), mais velha que Laura, e Ana suas irmãs, todas filhas de Antonio (Ramón Barea), um idoso temperamental e de saúde em declínio. Completam o cenário Paco, amigo de infância e juventude de Laura e pessoa ainda muito próxima à sua família, seu sobrinho Felipe (Sergio Castellanos) e sua esposa/namorada Bea, cuja personalidade prática contrasta com a proximidade quase pueril das demais personagens.

    Farhadi sempre demonstra interesse em situações não resolvidas ou mal acabadas e acomodações realizadas por indivíduos desprovidos de certezas a respeito dos rumos das próprias existências, bem como nas consequências inevitáveis destas virem à tona, e Todos Já Sabem, sua obra mais abrangente em termos de número de personagens e detalhes sobre suas vidas (até mesmo em função do suave exercício de gênero do cineasta, aqui flertando mais uma vez com um thriller) é um prato cheio para que o iraniano possa flexionar os músculos de sua curiosidade acerca da vida dos outros, do que os motiva e do que os impulsiona. Se a família de Laura e Alejandro parece carinhosa e harmônica, é porque seus problemas (bem ancorados na realidade) ficam afastados o suficiente para manter esta realidade; se o clima entre Paco, o pai de Laura e outros parentes e habitantes do vilarejo é um de intensa familiaridade, é porque a trégua para assuntos mundanos e picuinhas ainda funcionais é conveniente, apesar de tênue, e conserva a possibilidade de tantas pessoas diferentes não se entregarem à impessoalidade de tempos mais atuais e lugares mais metropolitanos. O roteiro de Farhadi preza por personagens autênticas, e na maior parte do tempo é exitoso ao demonstrar esta autenticidade em doses homeopáticas, evitando transformar cada cena em algo intenso e pautando eventuais revelações e interações mais drásticas por uma lógica interna de necessidade e oportunidade. Quando falha, não chega a comprometer tudo que ergueu, mas a aparente obrigatoriedade de momentos mais intensos por vezes se assemelha mais a uma tentativa de fermentar os dramas do que com o desenvolvimento natural e proporcional de revezes e embates iminentes.

    Contudo, é difícil não esperar sequências dramáticas mais chamativas quando se tem atrizes e atores do calibre dos presentes em Todos Sabem, e embora Penélope Cruz exerça um potente magnetismo como Laura, são as personagens de Bardem, Darín e Bennie (na figura de Bea, companheira de Paco), todas pessoas tentando agarrar-se às próprias dignidades diante de complicações financeiras e morais, que acabam conferindo a seus intérpretes a chance de encarnar emoções mais contidas, mais sutis e que melhor conversam com a atmosfera do filme (nem sempre racional, e bastante afetada por algumas reviravoltas e soluções que soam mais oportunas e espertas do que a trama realmente precisava – as aparições de um policial aposentado que auxilia a família quando do sumiço de Irene, em especial, são fortuitas demais pra que possamos considerá-las orgânicas e não meras ferramentas pra incrementar a exposição de elementos acerca da família de Laura e do entorno do ocorrido).

    Através de uma eficaz colaboração com José Luis Alcaine, habitual colaborador de Pedro Almodóvar, Farhadi faz um filme cálido e menos mergulhado em melancolia e angústia do que sugere sua premissa, e embora nem tudo seja concluído de maneira satisfatória (de um ponto de vista emocional E narrativo) e algumas pontas soltas pareçam importantes demais pra que não recebam a devida importância, é possível apreciar o resultado final, ainda que com moderação. Algo digno, se considerarmos a eficácia da realização a despeito de várias emoções e informações bastante telegrafadas — e é perfeitamente possível que os fãs do diretor/roteirista não se importem com isto, desde que continuem recebendo obras nas quais forma e conteúdo ainda se completam de forma exemplar, mesmo que sem o frescor e a vitalidade que fizeram do diretor um artista celebrado. Um Farhadi menos inspirado ainda é um Farhadi, e faz bem estar escorado em nomes que emprestam gravitas às suas ideias. Em especial quando estas comecem a exibir alguma fadiga.

    Texto de autoria de Henrique Rodrigues.

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  • Crítica | Escobar: A Traição

    Crítica | Escobar: A Traição

    Recentemente a figura do traficante Pablo Escobar se tornou, novamente, popular, principalmente depois da serie da Netflix, Narcos. Escobar: A Traição é a versão de Fernando León de Aranoa, diretor de Um Dia Perfeito sobre a relação entre Virginia Vallejo e o traficante, utilizando o casal Penélope Cruz e Javier Bardem nos papéis principais. A relação entre eles é entrecortada, ora pela postura do presidente dos EUA, Ronald Reagan, ao aproximar-se da Colômbia na tentativa de julgar Pablo em solo estadunidense, ora pelo esforço do colombiano em se tornar deputado federal e ter imunidades provenientes desse posto.

    O nome original, Loving Pablo, é justificado pelo fato do foco narrativo se dar no casal. No decorrer do longa, as tramas políticas ganham maior atenção, assim como as tratativas das autoridades e redes de inteligência dos Estados Unidos, ainda que claramente esse núcleo seja infinitamente menos interessante que o de Escobar em Medellin.

    Aranoa consegue registrar a violência da história de uma maneira estilizada e parecida com as de videoclipes musicais. Isso por si só já diferencia demais o filme da série Narcos, ainda que existam semelhanças narrativas, como era de se esperar ao retratar uma história real. Além disso, o diretor mostra preocupação por demonstrar uma precisão histórica, apesar de obviamente fantasiar em alguns pontos. Os exageros que Escobar realizou, como os assassinatos extravagantes aos seus adversários são muito bem pontuados, em alguns momentos com um certo excesso por parte de Bardem. Cruz também exagera, em certos momentos atua de modo bastante histriônico e histérico, remetendo algumas novelas mexicanas.

    Bardem faz um Escobar com uma veia de humor muito forte, apesar de obviamente ele não ser um sujeito engraçado. A forma como ele propõe toda a violência que se estabelecerá na Colômbia dos anos oitenta e noventa é dita de uma forma tão característica que faz o público rir de nervoso, como mecanismo de defesa. Ele não imita outras performances, mas bebe de algumas outras versões do sujeito que causou comoção no povo colombiano.

    O aspecto de thriller em alguns momentos se perde por conta das decisões criativas de rumar na direção de um melodrama com tons novelescos. Não há equilíbrio entre as duas formas de contar a história e nos momentos em que o roteiro recai sobre o segundo aspecto, se perde a força dos estranhos eventos que cercam a jornada de Escobar.

    https://www.youtube.com/watch?v=3aQMcc4YXWo

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  • Crítica | Assassinato no Expresso do Oriente

    Crítica | Assassinato no Expresso do Oriente

    Agatha Christie é a romancista mais bem sucedida da história em literatura popular no que diz respeito ao número total de livros vendidos, que juntos venderam por volta de 4 bilhões de cópias no decorrer dos últimos dois séculos, ficando somente atrás de William Shakespeare e da Bíblia Sagrada. Sua especialidade era escrever sobre romances policiais, o que lhe rendeu o apelido de “Dama do Crime”, sendo que seus livros renderam mais de quarenta adaptações para o cinema.

    Assassinato no Expresso do Oriente é um de seus livros mais famosos e, inclusive, já rendeu uma adaptação para a tela grande sob a batuta do mestre Sidney Lumet, em 1974. O filme teve ao todo seis indicações ao Oscar, com Ingrid Bergman levando a estatueta de melhor atriz coadjuvante. Em 2017, coube ao veterano Kenneth Branagh o desafio de dirigir e estrelar uma nova adaptação do livro que promete superar o número de indicações à Academia e quem sabe até mesmo dobrar o número de vitórias em relação à adaptação anterior.

    Tão logo o filme começa, somos apresentados ao simpático belga Hercules Poirot (Branagh), ou melhor, Hercule Poirot, no singular. Dotado de manias pela busca de equilíbrio e simetria (o que já rende boas risadas ao espectador), Poirot é simplesmente o maior detetive do mundo, como ele mesmo se denomina e com cinco minutos de fita, já descobrimos o motivo de tamanho orgulho para com si próprio e para com a sociedade, ao resolver um entrave ao pé do Muro das Lamentações, em Jerusalém. O detetive só quer voltar para sua casa, mas no meio do caminho, recebe notícias a respeito de um caso antigo e importante que o faz adiar seu retorno. É assim que Poirot embarca no Expresso do Oriente, um luxuoso trem de propriedade de seu amigo Bouc (Tom Bateman).

    Dentro dos vagões somos apresentados ao grande elenco principal que compõe a história e que está recheado de bons atores. Johnny Depp é Edward Ratchett, um vendedor de artefatos falsos que angariou diversos inimigos ao longo dos anos. Trabalham para Ratchett seu secretário Hector McQueen (Josh Gad) e seu mordomo Edward Henry Masterman (Derek Jacobi). A jovem Daisy Ridley interpreta a governanta Mary Debenham, acompanhada de seu parceiro, o médico, Dr. Arbuthnot (Leslie Odom Jr.). Judi Dench interpreta a grosseira princesa Dragomiroff e Olivia Colman, sua empregada, Hildegarde Schmidt. Também temos Willem Dafoe interpretando Gerhard Hardman, Michelle Pfeiffer na pele da fogosa Caroline Hubbard, além de Penelope Cruz, que faz a religiosa Pilar Estravados. O elenco ainda é composto por Manuel Garcia Rulfo, Lucy Bointon e Sergei Polunin.

    A paz dos personagens dentro do trem muda quando uma avalanche faz a locomotiva descarrilhar, obrigando toda a tripulação aguardar o resgate. As coisas ficam realmente complicadas quando um dos passageiros acaba por ser brutalmente assassinado em sua cabine durante a noite. Assim, Poirot decide investigar o crime a pedido de Bouc, e o escala para auxiliá-lo na investigação, uma vez que foi o único que dormiu fora do vagão em que ocorreu o crime, estando livre, portanto, de qualquer acusação, sendo todos os outros suspeitos em potencial.

    O filme respeita exatamente aquilo que o gênero precisa e tudo que está em cena é para criar, de forma proposital, confusão na cabeça do espectador. Então, com o desenrolar da trama, mas antes do assassinato, aquele que assiste faz as suas apostas sobre quem será morto, sobre quem será o assassino, etc. Inclusive, temos desde o suspeito óbvio, até algumas pistas que estão na cara do espectador, mas que nem o olhar mais atento poderá sacar a jogada, além de reviravoltas interessantíssimas que culminam com o desenrolar do caso e que mexem com Poirot de forma profunda.

    Os méritos – além de Agatha Christie ser totalmente responsável por ter criado todo esse universo, também são do roteirista Michael Green, que recentemente trabalhou em histórias e roteiros de filmes como Logan, Alien: Covenant e Blade Runner 2049, além de ter escrito e criado a série American Gods. O trabalho de direção de Kenneth Branagh desenvolveu um estilo de filmagem bastante interessante, sabendo se valer dos espaços restritos que tem a sua disposição em um trem, gerando cenas interessantíssimas de dentro das pequenas cabines e apertados corredores. Há de se destacar ainda, o belo plano-sequência que funciona em prol do roteiro, apresentando cada um dos personagens, como também a tomada aérea onde a câmera do diretor enquadra seus personagens em um corredor quase como remetendo a um tabuleiro de xadrez, com a disposição de suas peças. Seu trabalho como diretor sempre se dá em função da narrativa, como por exemplo nas cenas de interrogatório, onde os seus enquadramentos se dão através de vários espelhos, denotando como cada um desses personagens podem ser multifacetados.

    Mas o destaque mesmo vem de sua brilhante atuação, que não seria de se estranhar se lhe rendesse sua quinta indicação ao Oscar. Aliás, existem grandes chances do personagem entrar para o “hall da fama” de queridos personagens da cultura pop. Branagh, ator provindo do teatro shakesperiano, sabe como ninguém construir a figura de Poirot em todo o seu desenvolvimento dramático, dosando quando necessário sua excitação em atuações mais contidas e extrapolando suas emoções em outros momentos. O cineasta sabe como ninguém colocar o peso das escolhas, ações e palavras de seu personagem.

    Vale destacar que o filme termina com um gancho para adaptar outro clássico de Christie que também tem o detetive Poirot como protagonista, Morte No Nilo, de 1937. Assassinato no Expresso do Oriente agradou tanto os executivos que o sinal verde para a nova adaptação foi dado e deve trazer novamente Branagh tanto na pele do maior detetive do mundo, quanto na cadeira de direção.

    Texto de autoria de David Matheus Nunes.

  • Crítica | Zoolander 2

    Crítica | Zoolander 2

    Zoolander II 1

    Lançado quinze anos após o sucesso do primeiro filme, Ben Stiller resgata Derek Zoolander do ostracismo, começando seu Zoolander 2 com a mesma cena que abre o trailer que fez sucesso internet à dentro, mostrando o assassinato do astro Justin Bieber, postando sua foto póstuma no Instagram. É neste aspecto que mora um dos piores defeitos do longa, já que grande parte das boas piadas são entregues no material de divulgação, e não são bem desenvolvidas no decorrer da exibição.

    A intenção de Stiller é em reverenciar seu colega Drake Sahter, morto em 2004, ressuscitando sua co-criação em mais uma tentativa de revival esbarra em uma inspiração bastante fraca. O ex-modelo está no ostracismo, tendo todo seu hiato explicado através de um flashback curto, que visa atualizar o público e inserir o personagem em uma outra época. O anacronismo dos habitantes daquele antigo micro verso até funciona como piada, ainda que não sustente todo um filme sozinho. O chamado à aventura, ocorrido através de uma participação bastante engraçada de Billy Zane faz encontrar Derek e Hansel (Owen Wilson), que não se encontravam desde o acidente que mudou por completo a vida de ambos.

    O conflito de inimizade entre os dois fashionistas, visto no primeiro capítulo, é substituído por uma mágoa profunda, que faz ate perguntar qual era a intenção do texto de Stiller, John Hamburg, Nicholas Stoller e Justin Theroux, já que as melhores sacadas ocorre com Hansel, e não com o personagem titulo. O roteiro é confuso, escrito a oito mãos, fator que ajuda inclusive a explicar a demora em lançar em circuito comercial, gerando até a ácida comparação metalinguística, quanto a dificuldade de Zoolander em se adaptar aos novos tempos.

    A tentativa de fazer o drama engraçado ir para outro nível, atingindo camadas de evolução à vida adulta, com responsabilidades familiares esbarra em um texto muito confuso, que não consegue harmonizar sequer as participações especiais, ponto alto da outra versão. Sequer as personagens Valentina Valencia (Penelope Cruz) e Alexania Atoz (Kristen Wiig) conseguem fugir da mediocridade ultrapassada, com poucos momentos de um humor que supere os defeitos de mediocridade. A maioria das surpresas positivas, inclusive dessas personagens, já foram utilizadas nos ultimos trailers, fator que quebra o impacto destes momentos, claramente em uma tentativa desesperadas dos produtores em resumir tudo que havia de bom no filme nos teasers.

    A franquia deixa o arquétipo de comedia histericamente risível para se tornar uma auto parodia, uma escolha que tenciona ser corajosa, mas que resulta em um produto pífio. Ao mesmo tempo em que Stiller é generoso com seus colegas, em especial com Wilson e com o antagonista Jacobim Mogatu de Will Ferrell, falta uma direção mais ativa, fator que faz perguntar inclusive o motivo de Stoller não ter o feito, já que escreveu parte do roteiro e vinha de boas empreitadas, com Vizinhos e Cinco Anos de Noivado, explicado somente pelas dificuldades de agenda e talvez pela insistência de Stiller.

    Não há reprise dos momentos que fizeram do primeiro filme uma diversão descompromissada que surpreendia por um sub texto sagaz e debochado, o que é uma pena, já que Zoolander 2 não convenceu o público, mesmo com a onda nostálgica que afetou Hollywood recentemente, aproximando este muito mais do pouco elogiado Debi e Loide 2 do que há Tudo Por Um Furo, que conseguiu reverenciar e apresentar algo novo. A partir destes defeitos, é natural entender a baixa bilheteria, que reflete a falta de sincronia com a atualidade.

  • Crítica | Woody Allen: Um Documentário

    Crítica | Woody Allen: Um Documentário

    A evolução de um artista se mede pelo catálogo conjurado ao longo de tantos anos. De lá pra cá, uma lista que atesta o gênio de um comediante não pode ser menos que homérica, ou mais digna de ser debatida, filme por filme, num documentário feito sob medida a fãs, estudantes e curiosos sobre a vida (e obra) de Woody Allen, o criador dos monólogos, diálogos e de toda a comédia mais textual que visual de Noivo Neurótico, Noiva Nervosa (seu melhor filme), Memórias e Meia-Noite em Paris. Uma mente a serviço de um gênero que dedicou sua vida a aprimorar, muito além do estilo de comedia americana, das lições de Buster Keaton, Charles Chaplin e os lendários irmãos Marx, a trindade que ainda tanto espira Allen em sua máquina de escrever, de onde saíram seus mais de 50 roteiros, sem exceção ou afetações tecnológicas. Ao costurar a vida de um artista, o jornalista Robert B. Weide, fã do humorista, não escapa do humor leve e afiado de seu ídolo no ritmo de seu filme, e tampouco esquece que ninguém é perfeito.

    A tarefa de mistificar Woody Allen e ser justo, ao mesmo tempo, com os altos e baixos da carreira de quem faz praticamente um filme por ano, há quase oito décadas, nunca seria fácil. Reunindo velhos amigos como Diane Keaton e Mia Farrow, as duas musas do judeu inseguro e inquieto, tal qual Penélope Cruz e Scarlett Johansson, um pouco de sangue novo, entrevistas inspiradas pretendem mais revelar que comentar, expondo a arte mais nobre dos documentários a favor da reflexão: levar o fato ao público e deixá-lo ruminar, sem condicionar o rebanho a uma única opinião. E igual nossa relação de amor e ódio com os loucos e normais personagens criados pelo artista, aos poucos vamos descobrindo segredos e resgatando fatos, interessantes o bastante para merecer o registro, de uma vida tão polêmica quanto produtiva, ainda que parcial aos talentos e desejos de Woody. O próprio Martin Scorsese, colega desde os anos 70 (Taxi Driver e Noivo Neurótico, Noiva Nervosa são clássicos da mesma época), admite que poucos têm tanto a dizer quanto a mente por trás de A Rosa Púrpura do Cairo, Zelig e A Era do Rádio.

    Das mãos de onde saíram tantas reinvenções de um gênero que não se limita mais, também pela contribuição inteligente do cineasta, a provocar apenas aquela risada fácil, Woody Allen: Um Documentário nos remete a lições extraídas dos filmes, dos livros e da carreira que postula e converge numa vida curiosa, voltada à análise das emoções humanas, das traições entre casais, dos laços familiares, das fugas ao passado, do desejo pelas mulheres, das paranoias de viver em sociedade, universos inevitáveis nas histórias do autor. Elevar ao hall das lendas esses aspectos é tarefa de fã, o que certamente torna mais doce o desafio, ainda que incompleto, de emoldurar carreiras tão prolíficas numa obra que vai do jazz à psicologia, sendo divertido e deliciosamente previsível, como pede o figurino. Imagine um documentário sobre Scorsese (o que já está na hora de acontecer): o culto a diversidade cultural e a violência qualificada seriam omitidas? Resposta óbvia.

    Seria loucura afirmar que o documentário de Robert Weide não tem lugar entre os livros sobre o artista, em especial o hilário e amplamente pessoal Conversas com Woody Allen, da editora Cosac Naify, livro-chave para conhecer mais a fundo o que move e mantém na ativa a ostra octogenária que, com suas pérolas, nunca subestimou a inteligência do público. Um documentário quase à altura das fases do ídolo, se não a falta de precisão entre a arte da pessoa, e a pessoa da arte. Se o homem vale mais que o mito, ou vice-versa, o filme não se dá o direito de concluir essa questão, à margem de nosso juízo a partir dessa pendência, dessa falta de postura e coerência. Destaque, mesmo, ao equilíbrio entre o que é lendário na carreira de Allen e o simplório, tal seu platônico amor por sua eterna parceira: uma clarineta.

  • Crítica | O Conselheiro Do Crime

    Crítica | O Conselheiro Do Crime

    o conselheiro do crime - poster brasileiro

    O britânico Ridley Scott está no panteão de grandes diretores vivos. Porém, as melhores produções de sua carreira estão situadas em décadas passadas: sua estréia, Os Duelistas, adaptação de uma história de Joseph Conrad, ganhou o prêmio de Melhor Primeira Obra em Cannes. E suas duas seguintes produções, Alien – O Oitavo Passageiro e Blade Runner – O Caçador de Andróides são obras máximas da ficção científica. Três filmes que sustentam com muita solidez o sucesso do diretor.

    Scott ainda vive pela potência do passado, projetando na própria carreira a sombra de seu início. Até mesmo quando intentou um retorno às suas origens com outra ficção científica, Prometheus, teve uma recepção dividida entre público e crítica.

    Diante desta filmografia oscilante, o grande atrativo de O Conselheiro do Crime era o roteiro assinado por Corman McCarthy, considerado um dos maiores escritores americanos contemporâneos, e o elenco talentoso formado por Michael Fassbender, Javier Bardem, Brad Pitt e Penélope Cruz.

    A história entregue pelo escritor situa-se longe de sua prosa premiada. Mesmo que uma narrativa e um roteiro cinematográfico se aproximem em certas instâncias, há diferenças estruturais entre eles. Tem-se a ilusão de que um bom escritor é capaz de dominar todas as vertentes narrativas, mas poucos foram capazes de se destacar em todos os gêneros. No Brasil, Rubem Fonseca, em entrevistas, autodeclara-se um cineasta frustrado e seu roteiro de O Homem do Ano, baseado na obra de Patrícia Melo (diretamente influenciada pela obra de Fonseca), não se compara com o talento de prosador que possui. Exemplos que demonstram a disparidade entre estilos de texto distintos.

    O suspense é focado no conselheiro do título que investe no tráfico de drogas à procura de dinheiro fácil. Dentro deste ambiente hostil e desconhecido, o conselheiro se torna alvo fácil quando o comboio com narcóticos não chega ao local estabelecido.

    Sem evidenciar as intenções dos personagens, como se tentasse abordá-los com nuances elípticas, a história é disfuncional. Conduz o público de vazio a vazio, sem intriga, drama, suspense, sem elementos que se destaquem. A história reproduz eventuais componentes vistos em histórias do gênero: a droga produzida em ambientes pobres, o contraste luxuoso dos poderosos que retêm o dinheiro, e as iscas fáceis que decidem adentrar no perigoso negócio. Personagens tipificados e interpretados sem muita exigência pelo elenco.

    A falta de clareza narrativa produz uma frieza não-intencional. Ampliando a sensação de que nem mesmo o roteirista e, por consequência, os atores sabem das motivações dos personagens. E o que parecia ser uma história de erros se anula pela condução mal realizada.

  • Crítica | Para Roma com Amor

    Crítica | Para Roma com Amor

    To-Rome-with-Love

    Woody Allen é um cineasta de fórmulas: sua filmografia consiste em algumas histórias contadas repetidas vezes de forma mais ou menos parecida.  Porém o diretor é tão dono de seu estilo que é capaz de injetar frescor na obra e manter o interesse em filmes que apresentam pouca coisa de novidade.

    Mas, se o talento de Woody Allen é ser Woody Allen, seus filmes não são tão bons quando ele tenta ser outro diretor. Ainda que esse diretor seja Federico Fellini.

    Para Woody Allen (como para mim e, imagino, para a maior parte daqueles que já ficaram atrás de uma câmera de cinema), Roma é de Fellini, e ele enche seu filme de referências e homenagens ao diretor italiano: o núcleo do casal em lua-de-mel é adaptado de Abismo de um Sonho, o surrealismo da história de Leopoldo ou do “cantor de chuveiro” são absolutamente fellinianos.

    Mas de todas essas histórias a mais interessante é que tem menos Fellini e mais Woody Allen. O personagem de Jesse Eisenberg é um dos muitos alter-egos do diretor, um daqueles personagens inseguros, neuróticos, intelectuais e desajustados que ele analisa tão bem, mas que nesse filme não ganha espaço para ser olhado de perto, justamente por conta dos múltiplos núcleos.

    O forte de Allen são seus personagens e a forma como ele destrincha suas inseguranças, medos e neuroses. A graça de seus filmes é a lupa colocada nas nossas relações, nas brigas e detalhes de cada personalidade. Assim, ao optar por contar várias histórias ao mesmo tempo o diretor perde aquilo que tem de melhor e constrói um filme bastante simpático e eficiente, mas que não tem o carisma de seus melhores momentos.

    Texto de autoria de Isadora Sinay.