Review | Anos Rebeldes
O piloto do seriado, exibido em 1992, recebe o apelido de Anos Inocentes, ainda na época da possibilidade de posse de Jânio Quadros após a renúncia de Jango Goulart. Um grupo de quatro estudantes é formado por João Alfredo (Cassio Gabus Mendes), Edgar (Marcelo Serrado), Galeno (Pedro Cardoso) e Waldir (André Pimentel) que em aula discutem a rivalidade entre comunistas e capitalistas, e a paranoia a respeito da onda vermelha.
Há inúmeras demonstrações de que os militares ouviam “rumores” de uma invasão dos simpatizantes brasileiros com o socialismo. Como era de se esperar, os diálogos não são das melhores construções, especialmente quanto à veracidade dos fatos, mas também não destoam dos produtos da época. O mais engraçado é a Rede Globo fazer tal produção e obviamente não mencionar o apoio que prestou ao Regime à época, e que obviamente a impulsionou ao apogeu da hegemonia nas comunicações. Este mea culpa não aconteceu.
A ideia de João, líder dos estudantes e idealizador da maioria das ações entre os alunos, é convidar profissionais para palestrarem: todos profissionais de ponta, mas ligados à esquerda pensante do país, entre eles Orlando Damasceno (Geraldo Del Rey), pai de Maria Lúcia (Malu Mader). Mas o golpe realizado pelos milicos piora a situação por completo: perseguição aos comunistas. Os vermelhos tem de sair correndo para fora do país, e a caça às bruxas gradativamente cresce e evolui de algo brando até a coação de qualquer suspeito de ser ligado ao marxismo ou associado a qualquer prática que vá contra o conservadorismo, como a orientação sexual homossexual — “eles estão caçando comunas e bichas dentro do quartel”. A perseguição ocorre também dentro dos órgãos públicos oficiais.
A personagem de Suzana Vieira, Mariana, relata um depoimento que deu às autoridades, e que logo depois teve de repetir, em outra entrevista muita mais dura e cínica, em que afirma que sofreu agressões físicas unicamente por não ter as informações que procuravam. Tal fala atrapalha os planos de João publicar seu jornal estudantil junto com Damasceno, e toda a parafernália é movida para a casa do jornalista afim de rodar os folhetos ideológicos. A situação sentimental do casal de protagonistas é atravessada pelo engajamento dos rapazes. Toda a situação piora para os garotos, que resolvem protestar pichando muros com dizeres como “Abaixo a Repressão” e “Grêmios Livres”, exatamente como ocorria no ano de 1964.
O medo e o receio de serem pegos fazem com que alguns fugitivos tenham de se esgueirar e fazer contato com seus conhecidos em lugares secretos e pontos de encontro absolutamente seguros e completamente isentos da presença dos militares. Juarez, um personagem secundário, tem que pedir asilo e pular por cima do enorme muro da embaixada para não chamar a atenção da polícia repressora.
A personagem Heloísa (Cláudia Abreu) é uma menina jovem, mimada, filha de um empresário dos mais influentes da vida pública carioca — Fábio (Zé Wilker) — que decide pôr em prática uma vertente da rebeldia, que não a política, mas igualmente anti-conservadora: a jovem escolhe finalmente perder a virgindade antes de se casar, como num grito de revolta para a sua própria liberdade. Ela recebe uma reprimenda de suas amigas, ainda que estas sejam tão jovens quanto ela. A tentativa de romper com o tabu do corpo é freada até por seus pretendentes.
Os métodos da “diligência policial” deixam de ser meramente citados e passam a ser mostrados em tela, com toda a truculência típica das autoridades da época. O modus operandi grosseiro, invasivo e completamente desrespeitoso somente piora com o decorrer dos capítulos. Demonstrações da ignorância por parte do braço operante das autoridades são largamente mostradas, como a entrada forçada ao domicílio do professor Damasceno e consequente apreensão do livro A Capital de Eça de Queiroz, numa confusão com O Capital de Karl Marx. Outras anedotas, como o confisco de um livro sobre o cubismo, temendo a apologia ao governo de Castro, também são mostradas.
O romance entre João e Maria Lúcia é engraçado pelas idas e vindas, e pela semelhanças entre João e Damasceno. A impressão da garota é a de repetir toda a ladainha do pai neste relacionamento. A tentativa de fuga desta situação mostra a óbvia referência ao conceito de atração, pensado por Freud, que envolve a menina por seu pai. No entanto, mesmo com a recusa, a relação ganha ares de imponderabilidade e inexorabilidade do romance em questão. As coisas se agravam depois da prisão do professor esquerdista.
As partes registradas em preto e branco variam entre cenas históricas nacionais e internacionais, inclusive de embates ideológicos, mescladas com filmagens dramatizadas protagonizadas pela juventude da UNE resistindo ao regime à altura, ainda que com a instituição do AI-3. Mesmo com tom novelesco e caricatural da maior parte do roteiro, as imagens de apoio usadas ajudam o espectador a absorver toda a atitude e revolta dos ditos revolucionários, o que obviamente faz discutir a forma de agir da juventude atual ante as suas próprias reivindicações. Outro ponto interessante são as discussões por parte dos protestantes a respeito da resistência através da conscientização do cidadão incauto ou por meio da luta armada.
A segunda fase do seriado foi chamada de Anos de Chumbo, e já começava a toda velocidade, tornando a militância de João ainda mais ativa e muitíssimo mais perigosa. A discussão entre Edgar e João mostra um outro lado de quem resiste, pois o personagem de Marcelo Serrado não enxerga com bons olhos a luta armada, acreditando que tal postura piora a repressão — o que não deixa de ser uma verdade. Sua crítica também engloba o asco por ditaduras, sejam elas de direita ou esquerda. Mas o que realmente o preocupa são seus sentimentos por Maria Lúcia, pois vê-la sofrendo reabre a possibilidade da amizade dos dois se findar. O efeito disto ganha um capítulo importante com a promessa (não cumprida) de eles assistirem juntos à chegada do homem à Lua.
Os Anos de Chumbo são muitíssimos devastadores para o casal de protagonistas, especialmente quando Maria Lúcia tem um aborto devido a uma briga e depois é diagnosticada com depressão profunda. A opção pela clandestinidade dos guerrilheiros faz com que tudo piore; a cadeia de eventos e engajamentos faz com que João Alfredo tenha de abandonar a sua vida civil e se alocar no interior, em aparelhos dos quais só sairia para cometer suas ações. Para não magoar a sua amada, ele finge uma infidelidade com o objetivo de libertá-la do relacionamento e conseguir fugir sem que esta continue amando-o.
O entrave entre Heloísa e Fábio torna-se mais agressivo com o tempo após ela ser presa por ter sido confundida com uma das envolvidas com o sequestro do embaixador americano. A moça mostra as marcas de cigarro em sua pele e, ainda assim, seu pai não consegue entender o seu lado, tampouco seu ativismo, e a discussão entre os dois ganha troca de farpas e acusações das mais sérias, inclusive sobre a exploração de serviço em regime semi-escravo. A situação entre os dois se agrava ao ponto deles nem mais se falarem, graças, claro, à decisão da filha. A única vez em que eles rompem o silêncio não impede que as coisas acabem mal para Heloísa. Mais uma vez, Fábio opta por manter seus ideais retrógrados acima do bem estar de sua própria filha e essa parte da história tem um fim trágico.
Apesar da evolução de alguns dos personagens, como Maria Lúcia, que muda radicalmente de postura e de figurino ao casar-se com Edgar e finalmente tornando-se mulher, o modus operandi das células de subversivos é deveras infantil, sem qualquer preocupação em esconder a identidade dos sequestradores de um embaixador suíço. Algo entre o roteiro de Gilberto Braga e a direção de Dennis Carvalho se perdeu, talvez tal pecado seja devido a velha máxima de que o público noveleiro não engoliria uma trama tão rebuscada. Um dos poucos pontos que demonstram veracidade consiste na dúvida entre matar ou não o refém, após a desmoralizante recusa da soltura de algumas dezenas de presos entre os exigidos pelo grupo.
Alguns outros aspectos da época são mostrados de forma bem fiel, como a censura a programas midiáticos, utilizando um personagem como avatar da postura radical – Galeno seria escritor de uma novela, que sofreria mudanças drásticas nas falas e nas sinopses. Após a anistia, gritada a plenos pulmões para ser geral e irrestrita, os exilados voltaram finalmente à pátria, e entre eles, veio João a fim de dar um destino exato a sua relação com Maria Lúcia.
Após promessas feitas e depois de perceberem que ambos não mudariam seu modo ideológico de agir, o casal entende que é fútil a tentativa de domar um ao outro. João se vê sem sua alma gêmea e sem seu melhor amigo. As únicas coisas que lhe restam é a sua luta e sua marcha. Seu estilo de vida seria mantido mesmo com a abertura política, o que gera uma conclusão não ponderante. Seu DNA era de total contestação e não valia a pena demandar esforço para negar esta natureza.