Resenha | Crise de Identidade
O escritor Brian Meltzer, em sua segunda trama dentro do Universo DC, produziu uma das obras mais elogiadas dos últimos tempos dentro da editora, e capaz de ser lida tanto como uma narrativa no vasto universo do estúdio como uma grande história isolada sobre humanidade e heróis.
Desenhada por Rags Morales, Crise de Identidade foi o primeiro grande evento da Crise Infinita, uma das megassagas que modificam breves conceitos narrativos, introduzem antigos personagens e, eventualmente, promovem correções cronológicas para serem anuladas em alguma outra crise. A principal tônica da trama foi introduzir um viés mais realista e humano aos heróis, um feito que não só aprofunda cada personagem como produz maior diálogo com o leitor.
Antes de adentrarmos na Crise de Identidade em si, é necessário observar que a composição da Crise Infinita foi feita ao longo de alguns anos, desenvolvendo pistas para argumentar e sustentar a megassaga. Parte da ruptura que eclodiria nesta nova crise acontece nestas sete edições e tornou-se o ponto alto da narrativa, pois Crise Infinita por si foi considerada um fracasso que não diminuiu a qualidade desta excelente obra, a qual permaneceu mais canônica que o desfecho geral.
Parte do sucesso de Crise se deve à composição narrada, cujo enfoque não explora o lado heroico e popular das personagens, mas em seus círculos internos familiares. A cena inicial com Homem Elástico aguardando para entrar em ação demonstra a primeira desmitificação dos heróis, apresentando o tédio de um investigação como qualquer outro trabalho que necessita esperar a ação de outrem. A narrativa é fragmentada entre personagens do Universo DC, abrangendo diversas vozes dentro de uma história que apresenta a fragilidade de cada um desses paladinos. Uma desconstrução do mito que a editora construiu durante muito tempo com seus heróis implacáveis, capazes de subjugar até mesmo a morte.
Retornando ao passado pregresso da Liga da Justiça, Meltzel adiciona um agressivo acontecido passado que transforma em mais obscura a jornada dessas personagens, destruindo a percepção de que super-heróis estão acima de qualquer situação e prezando sempre a bondade, demonstrando que não há bússola moral quando são atingidos inesperadamente e no âmago. A utilização de um retcom – um passado descoberto em uma nova história – é um recurso tradicional nos quadrinhos e, muitas vezes, responsável por grandes absurdos incômodos pela maneira como causa uma ruptura na linha do tempo sem explicações plausíveis. Porém, o estupro de Sue Diby por Dr. Luz, na sede da Liga da Justiça, na Lua, é um violento ato contra um elo mais fraco. Dividida entre dar um fim definitivo ao vilão e levá-lo a justiça mais uma vez, a equipe se divide ideologicamente, e nasce neste momento a primeira ruptura. Anos depois, quando Dieby é assassinada por um desconhecido, a história vem à tona como o prenúncio de uma tragédia.
O fato trágico coloca herói contra herói, marcando uma crise que acompanha os grandes personagem da Liga mas dá voz a outros com menor contato com o público, em parte por não estrelarem revistas próprias ou, caso sim, estas não são lançadas em nosso mercado. Dessa maneira, o detetive que analisa o crime não é Batman, mas Electro, considerado, ao lado do morcego e Besouro Azul, um dos grandes detetives. A obra apresenta o drama interno de diversos personagens lidando com luto e como cada um deles ideologicamente defende o que deve ser feito quando descobrirem o responsável. Os heróis, mesmo representando uma espécie de coletivo que luta por um bem comum, destroem a impressão mitológica de seres olímpicos em pequenas discrepâncias que, lentamente, promovem a rachadura da equipe e das amizades.
A trama de Meltzer se desenvolve bem nos traços de Morales. Traços realistas que dão suficiente credibilidade para uma trama mais adulta, em que não há fantasia ou aventuras com objetivos maiores, mas apenas homens e mulheres se despindo de suas fantasias de grandeza em uma análise madura sobre si mesmos. O que faz, de fato, uma pessoa heroica parece a pergunta que atravessa todos os heróis da trama. A partir desse conhecido grupo, a obra compõe uma desconstrução do mito heroico, trazendo maiores tonalidades obscuras e a melancolia por de trás do capuz dos grandes da Liga da Justiça.
Ao dar prosseguimento à linha temporal e, ao mesmo tempo, desenvolver uma análise geral sobre a força do herói, Meltzer promoveu uma obra-prima dos quadrinhos. Potente pela história bem delineada e grandiosa pelo debate e reflexão por trás de grandes personagens que, até então, eram vistos como os bastiões definitivos da verdade e da justiça. Mas que, por trás de cada máscara, ainda são demasiadamente humanos.