Crítica | Guardiões da Galáxia
Os filmes de super-heróis se consolidaram com um gênero cinematográfico de tal maneira, que os vídeos estão cada vez mais parecidos com os quadrinhos. Não no sentido de fidelidade nas adaptações, mas em estruturas que podem ser reconhecidas em ambas as mídias. Temos continuações, cronologias confusas, reboots, e no meio desse emaranhado, fãs discutindo qual é o melhor. Agora, realizadores tentam faturar um pouco mais com personagens de baixo escalão. O segredo, nesses casos, parece ser a pouca pretensão por parte de quem produz e as baixas expectativas por parte de quem consome. Guardiões da Galáxia partiu da desconfiança total para uma leve curiosidade, e acabou se revelando mais um acerto do Marvel Studios.
Embora exista há décadas e tenha passado por várias reformulações, o grupo nunca foi muito conhecido, nem mesmo entre os leitores de HQ. Até porque, a parte cósmica do Universo Marvel sempre foi um nicho dentro de outro. Entretanto, isso permitiu grande liberdade na hora da transposição para a telona: ainda que os personagens sejam, em sua maioria, fiéis às atuais versões dos gibi, o tom do filme vai por outro caminho. O humor sempre foi parte marcante nas produções do estúdio, mas Guardiões da Galáxia é, de longe, a que mais se assume como comédia. Ou melhor dizendo, uma aventura que não se leva a sério, com cara e alma de anos 80. Não à toa, a cultura pop dessa época é reverenciada ao longo de todo o filme, como por exemplo, a citação, gritantemente óbvia a Star Wars.
Nessa linha descompromissada, o diretor James Gunn (co-roteirista ao lado de Nicole Perlman) não se preocupa em construir um plot elaborado, ou mesmo em estabelecer os detalhes do cenário em que a história se passa. Temos a sutil noção de uma história que se passa em um universo grande, multicultural, e com narrativa pregressa. Em um canto limitado desse universo, uma arma poderosa ameaça, não apenas a frágil paz entre duas civilizações, mas também todos os seres do cosmo. Argumento inegavelmente clichê, mas que não se mostra um problema, justamente por se apresentar-se desde o início, como uma justificativa para juntar uma galerinha do barulho que vai se meter em altas confusões – e garantir uma diversão insana durante a jornada.
Os aspectos técnicos são irrepreensíveis, principalmente a trilha sonora, inspirada e perfeitamente conectada com a narrativa. Mas a chave para o filme funcionar é a maravilhosa interação entre os protagonistas. Todos têm espaço para se diferenciar enquanto indivíduos, ganhando um carisma que só aumenta conforme o grupo vai se formando. A união pode até ser rápida, mas convence. Em comum, eles são anti-heróis imperfeitos que, por baixo da pose, escondem traumas verdadeiros. Seres solitários que, mesmo sem entender ou admitir, são tocados por uma amizade que surge de forma natural, porém nada piegas, já que, como amigos de verdade, eles vivem zombando uns dos outros, comprovando que a zoeira não tem limites.
Nessa conexão com a loucura espacial está o terráqueo Peter Quill, abduzido quando criança, logo após perder a mãe, e criado por saqueadores espaciais. Ele se torna um aventureiro canastrão que se autodenomina Senhor das Estrelas. O ator Chris Pratt começa atuando com um ar abobalhado, o que soa muito forçado, mas se recupera brilhantemente, conforme novas camadas são adicionadas ao personagem: um malandro que mostra ter bom coração e ser capaz de atos heroicos de pura abnegação, embora, logo em seguida, exija ser reconhecido e louvado por isso. As cenas são tão impagáveis quanto sua visão de Footloose e Kevin Bacon, que simplesmente valem o ingresso.
Zoë Saldana como Gamora, repete com qualidade o papel que já representou várias vezes (Avatar, Star Trek, Os Perdedores, etc), a durona que esconde uma certa fragilidade. O conceito da “mulher mais perigosa do universo”, presente nos quadrinhos, foi levemente ignorado, mas o resultado foi uma personagem menos unidimensional e mais interessante. Drax, o Destruidor, encenado pelo competente Dave Bautista, seguiu um caminho parecido. Entretanto, seu background mostra-se denso e sombrio, o que destoa um pouco do contexto. A solução para encaixá-lo foi manter sua postura séria e criar um humor involuntário em cima disso, como pode ser notado em suas sensacionais interpretações literais das gírias de Peter.
Os membros mais estranhos do grupo são também os mais marcantes. É impressionante o carisma conseguido por Groot, uma árvore humanoide que só repete uma mesma fala. O personagem, (na voz de Vin Diesel) tem sido comparado a uma versão muito mais simpática de Chewbacca. E por fim, Rocket, o célebre Guaxinim com Trabuco que ganhou a voz, quase irreconhecível de Bradley Cooper, mostrando a versatilidade do ator nesse trabalho. Rocket é um gênio tecnológico e planejador, irônico, mordaz, sacana, carente e raivoso; mais um caso em que as camadas compõem um ótimo personagem.
O restante do elenco conta com nomes notáveis em participações discretas, como Glenn Close (líder da Tropa Nova), John C. Reilly (oficial da mesma Tropa), Djimon Hounson (capanga do vilão) e Benicio Del Toro (mais uma vez como o afetado Colecionador, já visto na cena pós-créditos de Thor – O Mundo Sombrio). Michael Rooker se destaca um pouco mais, como o divertido Yondu, “pai adotivo” de Peter e Lee Pace se encaixa perfeitamente no estilo religioso fanático do vilão Ronan, o Acusador, personagem visualmente interessante, mas pouco desenvolvido. Karen Gillan também faz um bom trabalho, irreconhecível como a ajudante de Ronan, Nebulosa. O pai da moça, ninguém menos do que Thanos, aparece rapidamente, e ainda que seu interesse pelas Joias do Infinito seja citado explicitamente, sua sombra ameaçadora permanece apenas nas margens do filme, de forma que somente os bons amantes da Marvel entenderão.
A conexão com o restante do universo cinematográfico da Marvel é tímida. A cena pós-créditos, por sinal, é tão desconexa quanto a de Homem de Ferro 3. Disso, porém, resulta algo de positivo. Guardiões da Galáxia mostrou potencial para ser uma franquia com identidade e atrativos próprios, e não apenas um laboratório para apresentar e testar conceitos a serem utilizados nos filmes dos astros do estúdio. A sequência, já anunciada, prova não apenas o conhecido planejamento da Marvel Studios, mas também sua capacidade de continuar expandindo e explorando novas propriedades.
–
Texto de autoria de Jackson Good.