Resenha | Batman: O Messias
A década de 80 foi terreno extremamente fértil para as histórias em quadrinhos. Para Batman, a década foi palco de obras clássicas como A Piada Mortal, Cavaleiro das Trevas, Batman – Ano Um e Asilo Arkham, pilares canônicos do Morcego. Em um curto espaço de tempo, grandes roteiristas apresentaram sua leitura do herói, desconstruindo, ao seu desejo, inexperiência, loucura, parceria e morte ou quase-mortes fatais.
Lançado em 1988, em quatro edições especiais, Batman – O Messias se passa aproximadamente dez anos após as primeiras aventuras do herói. Um tempo considerável para experiência, treinamento e força tática. As cores de Bill Wray se destacam pela escolha de paletas não usuais, causando uma sensação de desconforto logo na primeira página, o desenho de uma imponente mansão em um céu avermelhado. Um mergulho, ao que parece, em um devaneio do Homem-Morcego, que, oscilando entre o passado e o presente, surge em cena subjugado e preso nos esgotos da cidade.
Não é a figura mitológica de Gotham City o enfoque da história, mas o homem por trás da máscara. Sobrepujado, faminto e enfraquecido pelo diácono Blackfire, o espírito de Bruce Wayne foi quebrado. O personagem já sofreu derrocadas anteriores mas nunca de forma centrada em sua psiquê interna. O roteiro de Jim Starlin nega o conceito de um herói quase inumano, fundamentado pelas décadas posteriores como um personagem indestrutível.
Responsável pela prisão do Morcego, o diácono Blackfire reúne nos esgotos de Gotham City os párias invisíveis da sociedade em uma seita que deseja erradicar o mal da cidade e dar poder aos menos favorecidos. Uma parábola afirma que o messias surgiu em uma época próxima da colonização da América, e, desde então, sua palavra santa é propagada. O diácono representa o personagem carismático que domina, a favor de si próprio, seres desesperados. Por intermédio de uma força maior, favorecida pelo uso de psicotrópicos, Blackfire induz uma seita devota pelo medo e fé. No prefácio assinado por Starlin em 1990, o autor refere-se ao personagem como um reflexo de certo grupo de americanos que estiveram contra os quadrinhos desejando evitar que a violência, a morte e o horror estivessem presentes em obras de entretenimento. A discussão foi passada para a história na figura do diácono, em suas palavras, “disfarçado como um líder religioso, se escondendo sob um falso moralismo enquanto age em nome de seus próprios interesses”. A figura do vilão carrega o lado sinistro das seitas e de seus meios para conquistar fiéis, um sistema que, apertando os pontos certos de tensão, coloca o próprio herói em dúvida.
A história demonstra a humanidade do Morcego e a fraqueza de Bruce Wayne. Mesmo que em porção diminuta, os medos persistam e ampliam-se pelos alucinógenos. Batman se torna um homem frágil, oscilando entre a realidade e o onírico, quase destruído pela culpa e pela sensação de ter sido mais um mal à própria cidade. Enquanto permanece encarcerado, crimes brutais acontecem nas ruas de Gotham. Eliminando criminosos, o Comissário Gordon e o menino-prodígio Jason Todd são incapazes de conduzir uma investigação destes crimes e encontrar o paradeiro do detetive que poderia elucidar tais acontecimentos. Um paradoxo que demonstra a importância de Batman dentro das engrenagens da cidade.
O desenho de Wrightson, reconhecido pelos traços de Monstro do Pântano, quebra a dimensão da realidade e imerge o leitor na consciência transitiva do Morcego em dúvida. É um lampejo criativo que implode a personagem em uma soberba trama psicológica, a qual também deveria figurar entre as grandes obras do Morcego, mas que ainda continua um tanto eclipsada diante destas grandes histórias. Não à toa, a ambientação do submundo foi utilizada no roteiro de O Cavaleiro das Trevas Ressurge, o final da trilogia cinematográfica de Christopher Nolan, que cirurgicamente retirou diversos elementos de narrativas chave do Morcego para construir seu roteiro.