Crítica | A Morte Passou Por Perto
Assistir A Morte Passou por Perto é como observar um grande jogador de xadrez no começo da carreira, errando jogadas e perdendo pra crianças no parque. Aliás, Stanley Kubrick era um exímio jogador do esporte, e mostrava um apreço intelectual por tudo que desafiava, com rigor, suas capacidades. Não à toa, seu coração escolheu a mais cara e difícil das artes, o Cinema, e nela começou com filmes tímidos mas que continham cenas memoráveis, como a já popular luta entre dois homens num depósito de manequins no final de A Morte Passou por Perto. Aqui, Kubrick ainda estava distante, mas muito distante ainda de ser um Deus na arte que revolucionou, junto de seus contemporâneos, tais como Alfred Hitchcock (O Terceiro Tiro), Nicholas Ray (Johnny Guitar) e Don Siegel (Dirty Harry), e parecia ensaiar e se familiarizar, mas com propriedade já sentida por todos nós, vários elementos que iriam permear sua filmografia até seu louvável testamento em 1999, com o erótico e poderoso De Olhos Bem Fechados.
Então, como apreciar o começo de um esportista antes do mesmo extrapolar seus próprios limites? Motivos aqui para isso não faltam; transbordam, na verdade, no decorrer deste conto que promove a imersão realista na história de Davy, um pobre boxeador e sua vizinha, Glória, uma pobre dançarina. Cansados e derrotados, eles só querem escapar juntos de uma realidade suja, e recheada de violência. A Nova York deles não é a de cartões postais, mas pertence aos mais agressivos e truculentos filmes noir, o charmoso gênero de Hollywood dedicado a histórias de gangsteres e seus envolvimentos com damas fatais, crimes e o submundo da máfia. Aqui não é diferente, já que Rapallo, um desses homens-sombra sem rosto e endereço, fica com inveja do amor de Davy com Glória, e a sequestra. Ao retirar a luz do fim do túnel de Davy, algo precisa ser feito, e as consequências da procura frenética por Glória não demoram a acontecer. Somos levados por entre as áreas mais ricas e pobres da maior metrópole americana, entre becos anônimos e as luzes da Broadway, com a morte sempre no cangote de tudo, e de todos.
Essa visão pessimista não é negada, aqui, por Kubrick, mas revirada, enquanto a história parece buscar um antídoto para que Davy possa alcançar, finalmente, algum êxito na sua vida perdedora. As tragédias então se fazem onipresentes num mundo onde todos se atrapalham ao cruzarem suas vidas, com todos os personagens representando desafios, uns para os outros, mas o drama jamais é exagerado, ou pesado demais a ponto de nos perturbar. As sensações aqui são mistas, humildes, e nos fazem torcer até o último segundo pelo casal que Deus uniu, e o homem separou, em ruas implacáveis que Martin Scorsese tanto explorou, em Taxi Driver e outros tantos filmes célebres. O uso de flashbacks faz da narrativa um desafio bem-sucedido para o iniciante Kubrick, que comanda o filme com muito cuidado, aquém da naturalidade de outras obras (um ano depois, já iria produzir o maravilhoso O Grande Golpe, produto esse bem mais sofisticado, e seguro de si). Mas a verdadeira curiosidade, aqui, é o quanto já se nota, pela primeira vez, o rigor de Kubrick pelos detalhes. A Morte Passou por Perto é o nascimento de uma visão extremamente meticulosa que já estava aprendendo a caminhar, por conta própria.
Outro ponto interessante é a dramaticidade que a dinâmica técnica de luz e sombra nos oferece, culminando em grandes cenas, graças a uma boa encenação e um preto e branco realmente lindo, homenageando grandes clássicos noir como No Silêncio da Noite, e o impagável Alma no Lodo, de 1931, e com várias cenas (editadas pelo próprio cineasta, ainda com poucos recursos financeiros) fazendo referência direta a fotos do surrealista Man Ray, cujos trabalhos Kubrick admirava demais. No corre corre de Davy, sempre fugindo e se escondendo de criminosos (e de si mesmo), desvendamos o frenesi e a lógica do movimento que iriam existir a partir daqui em todos os filmes do gênio por trás de Laranja Mecânica, e O Iluminado. Uma lógica ambiciosa, e perversa por ser essencialmente trágica, em que uns querem alcançar os limites do espaço, outros os limites da rebeldia social, e outros a vitória quase impossível numa guerra. Já uns apenas desejam alcançar (ou resgatar, no caso) o amor das suas vidas, nem que isso venha custar a sua própria existência. Um belo exercício cinematográfico, em suma, ainda que embrionário, e um tanto inseguro.