Resenha | Biblioteca Histórica Marvel: Demolidor – Volume 1
Em abril de 1964, o mercado editorial de quadrinhos americano ainda mantinha-se aquecido com revistas recém-lançadas pela Marvel Comics e um universo novo com grandes personagens criadas por Stan Lee. A estreia de Quarteto Fantástico ocorrera três anos antes e, desde então, novas criações surgiam anualmente em publicações da Casa das Ideias, apresentando heróis mundialmente canônicos.
Lançado no país em 2001, Biblioteca Histórica Marvel: Demolidor – Volume 1 é a única edição dedicada ao Homem Sem Medo dentre os poucos volumes da “Biblioteca”, lançados no Brasil pela Panini Comics com base na incrível e longa série original que compila o início criativo da Marvel Comics. Nesta edição em capa dura, os 11 primeiros números de Demolidor fundamentam a origem de um herói que, mesmo nunca citado no panteão da Marvel, protagoniza uma das obras mais coesas dos quadrinhos, com Stan Lee, Frank Miller, Kevin Smith, Brian Michael Bendis e Ed Brubaker entre roteiristas que passaram pelo título e que comprovam essa afirmação.
Em um prefácio assinado por Lee, o autor analisa a criação demonstrando carinho pela personagem e recepção positiva dos leitores. A composição de Mathew Murdock transcendia as origens criadas anteriormente nas quais personagens ordinários adquiriam poderes sobre-humanos. Ao impedir um atropelamento de um senhor cego, Murdock perde a visão e descobre sentidos mais apurados devido ao seu acidente. Um drama que potencializa sua força heroica fazendo da personagem um representante de bravura diante de uma adversidade.
Lee, The Man, demonstra habilidade narrativa ao fundamentar com cuidado a origem do herói. Na época, cada edição apresentava uma história fechada, denotando uma economia pontual para a trama ser desenvolvida e finalizada em aproximadamente 25 páginas. Em comparação com histórias atuais que se baseiam em arcos narrativos longos e, portanto, com um número maior de páginas, é significativo o uso da maior quantidade de informações condensadas em uma única revista.
A edição inicial é um desses impecáveis trabalhos de narrativa, inserindo as tensões fundamentais para se compreender a personagem. A infância de Murdock em um bairro difícil; a admiração pelo pai lutador rumo à decadência e o caráter do garoto ao lidar com adversidades; o apuro técnico para compreender melhor os sentidos aguçados; o luto pelo pai; o desejo de justiça. O autor sempre caracteriza personagens capazes de lidar com os obstáculos da vida, dando-lhes um senso de dignidade que potencializa o caráter heroico. Além do ritmo narrativo, o roteirista possui criatividade apurada, justificando as peripécias de suas personagens com situações plausíveis que, mesmo exageradas, são aceitas pelo leitor sem questionamento.
Nas histórias, há um narrador-observador que apresenta cada acontecimento produzindo mais uma linha narrativa, ao mesmo tempo que balões de pensamento dão vazão ao interior das personagens. Atualmente, a pluralidade narrativa foi quase extinta, prevalecendo narradores-personagens ou observadores, apenas. Lee compõe um narrador empolgado, dialogando com o público com entusiasmo e muitos adjetivos. O estilo aumenta a credibilidade de suas tramas e reveste-as de um tom épico.
Cada história apresenta uma aventura isolada, consagrando a ação enquanto oferece dimensão humana às personagens, com destaque ao possível triângulo amoroso entre Murdock, o parceiro advogado Foggy Nelson e a secretária Karen Page. A relação inicial dos três permanece na possibilidade e na tensão natural de quem não revela os sentimentos.
Nesta onze edições, Demolidor passa pelo traço de três desenhistas, Bill Everett, Joe Orlando e Wally Wood, que permaneceram como convidados até a série encontrar um ilustrador oficial, Bob Powell, cuja primeira modificação foi adicionar outro D no peito do uniforme, compondo o conhecido DD entrelaçado dando destaque ao Daredevil no original, algo que no país ganhou uma interessante versão do Demolidor mantendo a força das consoantes. Além disso, em uma edição após a estreia de Powell, o desenhista e roteirista modificam o uniforme para o tradicional manto vermelho.
Dentre as evoluções da personagem, nota-se como os quadrinhos brincavam com muitas evoluções tecnológicas que aprimoram o herói fisicamente e lhe dão diversos aparatos que o ajudam. Além da bengala que inicialmente funciona como uma arma para a luta, Murdock insere um microfone no objeto, posteriormente um rádio para escuta policial, além de outros recursos que fazem parte da mítica heroica, equilibrando a trama em conveniências que extrapolam a realidade mas são plausíveis graças à força de Stan Lee como criador e roteirista.
É notável a evolução narrativa dos quadrinhos da época em comparação com obras anteriores, como nos primórdios de Batman e Superman. Nesta década, já havia a percepção de que quadrinhos significavam tanto uma narrativa imagética quanto escrita. Sendo assim, imagem e texto são alinhados com maior proximidade, resultando em um impressionante ritmo narrativo. Trabalhando sensações primárias como tensão, ação e adrenalina aventureira, as primeiras histórias do Demolidor entregam um grande personagem, equilibrado entre a luta com inimigos e tensões internas do alterego advogado, sedimentando bases que seriam levadas a outros patamares por roteiristas e desenhistas futuros.