Review | Narcos – 1ª Temporada
Pautada no ideal de seriado típica do formato Netflix, Narcos consegue reunir em seu piloto as principais influências dos dois produtos mais notórios e distintos da filmografia do diretor José Padilha, com o caráter informativo e documental de Ônibus 174, e com a intenção dramática e denunciativa de Tropa de Elite, aproveitando-se da dubiedade típica da guerra civil instaurada nas ruas do Rio de Janeiro, emulando-as sobre a realidade vista nas ruas e estradas ermas da Colômbia e de todo o cone sul.
A pauta do seriado criado por Cris Brancato, Paul Eckstein e Doug Miro é o realismo fantástico, onde os eventos corriqueiros seriam vistos por uma ótica escapista, utópica e até glamourizada, mas ainda assim verossímil dentro da abordagem narrativa, de certa forma referenciando a obra do autor colombiano Gabriel Garcia Márquez. Através de uma narração em off do agente da DEA Steve Murphy (Boyd Holbroock), o drama mostra os avanços gradativos dos policiais nas investigações sobre o tráfico de narcóticos, com uma abordagem íntima e invasiva, especialmente na construção de seu “herói”, Pablo Emilio Escobar Gaviria. A personificação de Wagner Moura, apesar da dificuldade de não projetar seu regionalismo na voz, convence em cada passo, apresentando uma faceta que equilibra assustadoramente bem carisma e imponência.
O modus operandi da equipe de transporte internacional só não é mais surpreendente do que o detalhamento das expansões dentro do território colombiano, que envolvem dinheiro, poder e posturas mais enérgicas, bem como a demonstração de uma personalidade bastante ácida, e um modo de lidar com os subalternos, seus e os da autoridade, bastante ímpar e de empáfia quase irreal. O estilo que mescla documentário com cenas dramatizadas faz aviltar o quão contraditório é o modo como os Estados Unidos combatia a “epidemia” de drogas, apelando para aspectos agridoces de deboche, elevando a discussão que incrimina o capitalismo como regente de todos os males a um nível inteligente, sem apelar para o lugar comum, sendo palatável até para o espectador médio e incauto.
A intimidade de Pablo é analisada de modo enérgico, sexual e sanguinário, bem ao modo de seu estilo de vida, ostentado por dinheiro e poder. Sua tomada de influência é inteligente: utilizou o mesmo capital que escravizou seus antepassados para contrapor e contra-atacar os colonizadores que exploraram o seu povo, através de um ataque direto a figura internacional que detinha o poder até então.
O projeto de vida marginal de Escobar passa também por uma edificação de sua figura controversa, mas bastante popular, que despertava o apreço do povo pelas construções que causavam no povo um maior conforto rotineiro. A diversão mostrada em seu cotidiano quase suplanta o processo enfadonho pelo qual passa Murphy como investigador, responsável por rastrear o encalço do homem poderoso. Os lados distintos também são diferenciados pela atmosfera que os cerca, apesar de haver crises claras de relações nas duas ambientações.
O formato episódico lembra demais as recentes séries que envolvem o crime organizado, especialmente Família Soprano e Boardwalk Empire, que também visavam humanizar figuras marginais, normalmente demonizadas pela opinião pública, primeiro pela imprensa, depois através do conservadorismo imposto a patuleia. No entanto, não há qualquer aplacar culposo, já que os atos terroristas são narrados pelo agente da DEA.
A incriminação apontada no texto não está evidentemente na figura do protagonista, mas sim no hipócrita discurso americano, que visa combater a lei de oferta e procura do modo mais imbecil possível ao caçar quem lucra de modo clandestino, ignorando os que lucram às custas de seu povo e de seus esforços. Ainda que as manifestações de vigor e restrição sejam comportamentos típicos das autoridades, o sofrimento é um aspecto comum aos subalternos, a parte da população comum e ordinária, que tem em sua carne as reais consequências e baixas. Murphy, em sua narração, deixa claro que os motivos das investigações ocorrerem é a quantidade de dinheiro ilegal que corre pelo país “livre” de impostos, algo que incomoda os lobistas, que tentam reaver o somatório de dinheiro como se este bem fosse exclusivo a eles.
A música de abertura, Tuyo, executada por Rodrigo Amarante remete a uma melancolia simplista, que exatamente por não combinar com o conteúdo complexo discutido nos roteiros, serve de contraponto à violência extrema narrada em partes documentais e dramatúrgicas.
A partir do oitavo episódio, o glamour antes aviltado finalmente dá lugar em definitivo ao processo de perseguição, que faz todo o estilo de vida de Escobar deflagrar em uma franca deterioração, que emula, entre outros sentimentos, a também flagrante ruína moral pelo qual o personagem sofre e impõe a si mesmo.
Narcos reúne em seu conteúdo um caráter denunciativo, em premissa, mas não em relação ao tráfico internacional de drogas, já demonizado pela sociedade tipicamente conservadora e pela imprensa. Mas pela abordagem. A maioria dos governantes realiza a chamada guerra às drogas primeiro em uma autocrítica ligeiramente enfática na atitude dos norte-americanos, em uma versão mais leve do que a da filmografia recente de Oliver Stone, e depois, criticando algumas das atitudes do Congresso colombiano, que se sentia protegido pelo mandante maior. Ao menos nas operações escondidas, o seriado é bastante acentuado, algumas vezes exigindo de seu espectador uma atenção maior para capturar as nuances da manipulação, muito além dos grossos e pesados investimentos financeiros na manutenção de um exército de coerção.
A fala comum sobre o sotaque de Vagner Moura revela – entre tantos outros fatores – uma pobreza de espírito bastante comum por grande parte dos analistas críticos brasileiros. Negar que há alguns muitos tropeços gramaticais e de dialeto por parte do ator baiano é ignorar o óbvio, mas a atuação do protagonista vai muito além disso, pois é baseado em um profundo estudo dos trejeitos do empresário do pó, em uma ação até mais teatral do audiovisual, que supera e muito qualquer falta de semelhança física entre Moura e Escobar. É no comportamento e postura que o ator consegue apresentar um diferencial, suficiente para ofuscar qualquer indiscrição linguística, já que toda a identidade da lendária figura lá está. Curioso é como tal “fator” é encarado em terras brasileiras, revelando um conceito rodriguiano bastante forte, além de aludir a um seletivo modo de retrucar. O reducionismo e generalização torpe, artigos tão refutados pela crítica em geral, por vezes permeiam o comentário geral, o que afasta a análise da coerência que deveria pressupô-la.
O desfecho, no décimo episódio, finalmente abraça a condição de perseguição repleta de infelicidade e pesar, pondo Murphy e Escobar em pontos muito próximos, exibindo em detalhes sórdidos as ações de captura da DEA, mostrando a invasão de modo tático e eficiente, com um esmero para retratar a violência de um modo poucas vezes visto no audiovisual, condizente demais com a produção orquestrada por José Padilha e dirigida por tantos outros realizadores prolíficos, especialmente Fernando Coimbra, de O Lobo Atrás da Porta, que apresenta um maravilhoso plano sequência em sua participação.
O enlace finda de maneira misteriosa, em nada simples, provavelmente emulando as ambíguas questões a respeito do negócio e do consumo das substâncias que fazem este microuniverso girar. A semelhança de Narcos com Família Soprano não se dá somente pela abordagem fantástica da violência, mas também pela universalidade de seus temas, já que o fato de tocar na indústria que negocia entorpecentes serviria em abordagens diversas, ao menos em seu esqueleto. Em uma análise mais aprofundada, existe uma complexidade na discussão sobre economia, humanidade e especialmente sobre o consumo de um estilo de vida por parte da sociedade norte-americana baseado em hipocrisia e em exploração de prazeres proibidos, utilizando-se de pessoas reais para contar uma história quimérica, repleta de carisma, sangue, volúpia e vício, localizada entre muitos dos pecados capitais condenados pelo espectro conservador vigente.