Dossel dos Dólares – A Trilogia do Oeste
O Star Wars no Oeste, antes de ser no espaço. Pensaram que onde não existe som – mas, nos filmes de George Lucas, o que não existe é a física – seriam mais bacanas duelos de rifle com sabres de luz, espaçonaves ao invés de cavalos etc. Pode ser, pode não ser, mas se de fato há discordância da qualidade da interminável série da família Skywalker, o mesmo não se remete aos clássicos indiscutíveis de Sergio Leone, seminais em sua proposta mas não em realização: os filmes são deliciosamente exagerados na abordagem das histórias, sendo que esse “excesso de Cinema” tornou imortal a trilogia justamente pela precisão na aplicação de intenções artísticas que Leone empregava, na fartura de linguagens em um mesmo filme, tal qual Akira Kurosawa ou Sam Peckinpah posteriormente, cada um com a sua manha. Além do gênero e sub-gênero spaghetti, exagero mesmo é não encaixar a quinquagenária Trilogia dos Dólares (em 2014, o primeiro filme completou 50 anos) entre as maiores trilogias, junto à Trilogia de Apu, do indiano Satyajit Ray, ou de Michelangelo Antonioni, a da Incompatibilidade. Leone vai além do diretor favorito de gente como Quentin Tarantino, foi um dos mestres que, com poucos filmes, feito Stanley Kubrick ou Hiroshi Teshigahara, se tornou uma lenda e elevou o Cinema ao respeito do mundo.
Em cada bala, e não são poucas, se justifica a relevância da metáfora na figura de um abutre, vulgo feitor de caixões. A clássica frase: “Erro meu, quatro caixões” se encaixa e é a essência do manifesto italiano a um cinema de hipóteses e incertezas contra qualquer permanência de clichês anteriores na filmografia do país. Leone se preocupa só em criar a mitologia primária da trilogia, a ética de um microcosmo empoeirado onde a moral é matar ou morrer ou servir, no máximo. Cada figura, e isso se aplica aos dois outros filmes, arrasta suas esporas num fio de navalha que ajudam a tecer e tornar cada vez mais mortal em seus conflitos de interesses, divertidos, unilaterais, havendo nestas questões planos óbvios para próximos filmes, que naturalmente iriam superar este primeiro exemplar, humilde síntese ao cunho de Sérgio Leone. Por Um Punhado de Dólares é o berço de gigantes como Sergio Corbucci, Enzo G. Castellari e Fernando Di Leo, ases da terra da Sicília que não escondem em obra alguma referências à excelência da história de gringo, cowboy sem nome, passado e, graças à sábia incerteza que o filme se apropria durante a projeção, futuro.
A morte, entretanto, é um excesso de certeza – lê-se isso nos olhos de Lee Van Cleef. A cena de Clint Eastwood e Cleef atirando em seus chapéus, dois raios no gatilho, para provar suas miras é emblemática: um sobrevivente avisando ao outro para não traí-lo em sua parceria desconfiada, só pra chegarem mais rápido na recompensa de ambos, no violento Índio, vilão sem limites cujo desejo repousa no banco de El Paso, e que o grande ator Gian Maria Volonté tratou de tornar inesquecível. Agora, o vilão e o parceiro de Gringo ganham pretérito e propósito para distinguir suas condutas em sentido imediato perante Gringo, caçador de recompensas que a morte parece não querer cruzar seu caminho. Num trote infinito de causas e consequências, um mural de esporas e verdadeiros centauros consagra um gênero como Cinema quente e abafado de primeira qualidade. Leone agora é mais dono de si, dono de suas marcas registradas. Por Uns Dólares a Mais carrega consigo uma propriedade mais refinada para representar sozinho, se for preciso, o trio que faz parte, lapida o que deu errado antes e o que dará certo mais tarde, e concede honra ao fazê-lo.
É o ponto máximo, é o épico que toda trilogia com começo, meio e fim tenta ter, mas poucas conseguem – todos sabemos bem disso. Leone não só atingiu a veia suprema na exploração de temas e recursos de sua trilogia, como maximizou seu legado sem precedentes em Era Uma Vez no Oeste, de 1968, um colosso incorruptível diante dos arquétipos da mise en-scène contemporânea. Il Buono, il Brutto, il Cattivo (porque no idioma original é sempre melhor) é tudo que o cinema permite, é um abuso positivo das quatro extremidades de uma tela de cinema em prol de uma história longa, 161 minutos cabíveis ao sentido de epicidade que Leone não abriu mão de conjurar. É difícil imaginar outros atores melhores: Eastwood, Van Leef e o extraordinário Eli Wallach – recém falecido, o eterno Tuco – são o ménage à trois, o real cenário pulsante e vivo de uma teia de fetiches ordinários, descompromissados, contudo cercados numa abordagem cirúrgica aos rumos que um dos maiores expoentes do western mundial ao longo dos anos tomou, aos poucos, sem pressa, até um clímax/aula de edição cinematográfica muito além do deserto de Almería, no nordeste de Madri (Espanha), que serviu de cenário a Por um Punhado de Dóles, e antes a O Xerife de Queixo Quebrado (1958), um spaghetti western britânico.
Três Homens em Conflito é um marco histórico a ser celebrado ao mostrar (e definir, para muitos) o Velho Oeste de forma mais realista que John Ford ou Howard Hawks mostraram, para efeito de comparação, é claro. No encerramento da trilogia, Leone deixa a ambição subir à cabeça mas sabe como a usar em benefício próprio; chave difícil de se encontrar. O filme persegue suas personas, seus protagonistas, em três histórias que não evitam de se chocar de uma forma para a qual, hoje em dia, quase não se abre exceção. E sobretudo, se num mundo onde um homem vale o quanto mata e a mulher o quanto vê e silencia, muito da experiência irresistível se deve à alegoria sonora, a inconfundível música composta por um dos maestros seminais da trilha sonora fílmica, o veterano que em 2012 fez ingresso aos domínios de Quentin Tarantino – e desaprovou – com Django Livre, uma homenagem aos moldes de um tarado por Leone.
Ennio Morricone, de timbres seletos e cada vez mais diversos no uso de instrumentos inusitados, tão inusitados quanto o espírito irreverente que se sente na tela, cria um bálsamo sonoro presente em 90 porcento do tempo, com aperitivos presentes neste artigo. Sua melodia, sensibilidade à flor da pele, embala e aprofunda um universo ao constituir aspectos subjetivos que nenhum diálogo e nem ação poderiam alcançar senão com a música. A digressão dos momentos não teriam a mesma emoção sem a fórmula sensorial desenvolvida por poucas e tão eficientes intervenções musicais. Morricone cria sublimes concertos e faz a poeira testemunhada ter gosto e cheiro, maturidade que num cenário merece tamanha identidade acústica. Numa trilogia que faz permanecer sua qualidade técnica até o fim como forma de personalidade linear, a música só é cortada pelos tiros que falam mais alto que qualquer coisa, afinal, señor, isso ainda é um bang bang. †